SERRA LEOA: AIS ajuda a formar padres para serem “agentes de reconciliação” após anos de “guerra sem sentido”

Ainda hoje são visíveis as marcas deixadas durante a sangrenta guerra civil que durou de 1991 até 2002 e que causou a morte a milhares de pessoas, em que crianças foram recrutadas como soldados, inúmeras mulheres e raparigas foram vítimas de violência sexual e mais de dois milhões de pessoas tiveram de fugir de suas casas. É neste país, também muito pobre, que a Fundação AIS lançou um projecto para a formação de 150 sacerdotes para serem “agentes de reconciliação, cura, transformação social e coesão nacional”.

O Padre Peter Konteh estava na cama, a dormir, quando ouviu pela primeira vez as explosões. Saltando de pé, chamou o outro padre da casa para se levantar e correr. “Os rebeldes estão a vir de leste!”, disse ele, “temos de fugir”. “Eu estava a gritar muito, mas o outro padre virou-se para mim e disse-me para me acalmar, que já não estava na Serra Leoa, mas nos EUA. O que eu estava a ouvir eram os fogos de artifício das celebrações do 4 de Julho. Foi então que percebi que também eu estava traumatizado”, recordou o Padre Peter, durante uma visita à sede da Fundação AIS Internacional, em Königstein, na Alemanha.

O Padre Peter, que, entre outros cargos, é presidente da Confraria dos Sacerdotes Católicos da Serra Leoa, encontrava-se em Nova Iorque para defender junto da ONU a necessidade de uma intervenção na guerra civil do seu país. Ao contrário de muitas outros conflitos em África, este não foi causado por religião, ideologia ou etnia, mas tratou-se, isso sim, de uma “guerra muito insensata, de ganância”, uma vez que os rebeldes armados tentavam capturar recursos naturais valiosos, incluindo minas de diamantes.

11 ANOS DE CONFLITO

A guerra (1991-2002) ocorreu num período muito conturbado. Poucos meses após o início do conflito, a população foi convidada a participar num referendo. A grande maioria votou a favor da alteração da Constituição e da instauração de uma democracia multipartidária. “O povo preferiu realizar eleições antes da paz, para que, após as eleições, um novo governo pudesse negociar com os rebeldes.”

Infelizmente, as coisas não correram como planeado. Os rebeldes começaram a cortar as mãos dos civis para os impedir de participar nas eleições e, antes que estas se realizassem, o exército tomou o poder através de um golpe. Durante os 11 anos de conflito, dezenas de milhares de pessoas foram mortas, e inúmeras foram violadas, mutiladas ou forçadas, mesmo crianças, a combater e a infligir estas atrocidades aos seus compatriotas.

A guerra civil deixou cicatrizes que ainda hoje são visíveis. Mais de 2 milhões de pessoas tiveram de fugir, grande parte da infra-estruturas do país foram destruídas e, ainda hoje, a economia depende da exploração dos recursos agrícolas em mais de 70%. Calcula-se que cerca de 7 milhões de pessoas da Serra Leoa vivam actualmente em situação de pobreza. Como se não bastasse o que correu por causa da guerra, o país tem sido palco também de epidemias graves, como a do Ébola, em 2024, e antes disso, a do Coronavírus, que vieram agravar ainda mais esta situação.

UMA HISTÓRIA DE PERDÃO

Neste país, a Igreja tem procurado ser um agente de reconciliação, aproximando antigos inimigos, procurando ajudar as pessoas, as famílias a sobreviverem no dia-a-dia. Mas não é fácil. “Havia um mendigo que costumava sentar-se à porta da catedral a pedir dinheiro. Não tinha mãos, porque tinha sido mutilado durante a guerra. Um dia, um homem bem vestido tentou dar-lhe algum dinheiro, mas ele recusou e causou um tumulto. Saí para ver o que se passava e ele disse-me que tinha sido o homem que lhe tinha cortado as mãos”, recorda o Padre Peter.

O padre levou os dois para o seu gabinete e ouviram o pobre homem desabafar a sua raiva. “Nunca tinha sido mendigo; trabalhava com as minhas mãos. Mas agora, nem sequer posso ir à casa de banho sozinho. Compreendes a humilhação que me causaste?” – perguntou ao seu antigo agressor, que estava também já estava em lágrimas. “Depois de oito sessões comigo, o mendigo acabou por dizer que tinha perdoado ao homem que lhe tinha cortado as mãos, mas, para o antigo rebelde, isso não era suficiente. Queria saber o que podia fazer para compensar os seus crimes. Disse: ‘Lembro-me muito bem de ele me ter implorado para não lhe cortar as mãos, mas estávamos todos drogados e eu fi-lo’. Como se pode ver, até os agressores estão traumatizados… Na altura, na guerra, podem ter agido de forma dura, mas estas coisas esgotam-nos e precisamos de nos curar”, disse o Padre Peter à Fundação AIS Internacional.

É neste contexto que a Igreja decidiu tentar resolver a questão do trauma. Com a ajuda da Fundação AIS, 150 padres estão a participar num programa de formação para se tornarem “agentes de reconciliação, cura, transformação social e coesão nacional”.

DAR VOZ AOS QUE NÃO TÊM VOZ

Isto é muito importante num país onde as feridas causadas pela guerra e agravadas depois pelas epidemias, ainda estão tão visíveis na sociedade. A Igreja tornou-se na “voz dos que não têm voz” e isso deu origem também a muitas conversões, porque as pessoas confiam na Igreja. “Não só lhes damos pão para comer, como também podemos defendê-las”, explica o padre Peter.

Outro exemplo do trabalho de reconciliação e de promoção social que a Igreja desenvolve na Serra Leoa, é o que acontece em Kambia. Por lá estão três religiosas da congregação de Jesus Misericordioso. Uma delas é polaca. A Irmã Gianna chegou em Dezembro de 2016 e apaixonou-se depressa por esta terra que adoptou já como sua. “Eu amo este lugar. As pessoas que vivem aqui, por exemplo os nossos vizinhos são muçulmanos, são muito abertas connosco. O meu inglês não é perfeito e no início era difícil falar línguas diferentes, falar em inglês. Mas eles diziam: ‘Tente, irmã, tente! Queremos que fale, fale em inglês. Tente. Nós vamos tentar perceber o que quer dizer’. Mesmo quando eu não entendia aquilo que me queriam dizer, repetiam-no muitas vezes e eu tentava entender.”

Por ali falta quase tudo, a começar pela electricidade, mas nada disso esmorece o entusiasmo destas irmãs. No seu trabalho de todos os dias procuram mostrar que Deus é amor. “Tentamos fazê-lo por todo o lado onde vamos. Estamos neste lugar há muito pouco tempo, mas tentamos, com o nosso modo de vida, mostrar o que significa ser Deus misericordioso, que Deus é amor…”

As irmãs estão ali para isso, para estenderam as suas mãos, para ajudarem a construir sonhos, para ajudarem a reconstruir vidas. E ideias para isso não faltam. “Temos planos para este lugar”, diz, sempre sorrindo, a Irmã Gianna. E com a ajuda da AIS, alguns desses sonhos foram-se tornando realidade. Foi assim, por exemplo, com a escolinha para os mais novos.

UMA IGREJA DE BRAÇOS ABERTOS

O edifício que existia foi renovado sempre a pensar nas crianças. O telhado foi reparado e construíram-se casas de banho, uma novidade por ali. “Agora, podemos ensinar as crianças e melhorar o seu nível de vida. Vêm aqui todos os dias e aprendem, estudam e brincam, mas também recebem uma refeição quente, o que é raro para elas. São felizes e afortunadas”, diz a Ir. Gianna, agradecendo a todos os benfeitores que tornaram possível esta obra.

Actualmente, o infantário é frequentado por cerca de uma centena de crianças. As irmãs acreditam que elas poderão vir a ser uma semente de fé para a comunidade local. E há sinais de que alguma coisa está já a mudar… “A maior parte das famílias são dos arredores. Aos domingos, vestem os seus filhos com as suas melhores roupas para os levar a rezar connosco. Este tipo de evangelização está a funcionar. Não podemos evangelizar muito com palavras, mas acredito que, graças ao nosso exemplo, muitas destas crianças poderão aproximar-se de Cristo no futuro”, diz a irmã, sempre com um sorriso bondoso.

Um dos projectos que mais entusiasma a Irmã Gianna é o Centro da Divina Misericórdia. É um espaço aberto a todos, uma igreja sempre de braços abertos, pronta a acolher, pronta a abraçar. “É um local onde queremos ajudar as pessoas a crescer espiritualmente na fé. Nós, as irmãs, queremos lembrar a todos que todos temos valor aos olhos de Deus, porque Jesus deu a sua vida na cruz por todos nós”, explica à Fundação AIS.

A presença destas irmãs tem tido um impacto muito positivo na vida da comunidade local, especialmente entre os jovens e as crianças. As irmãs chegaram, estabeleceram laços de proximidade e deixaram que o amor falasse mais alto. Tanto a Irmã Gianna como o Padre Peter ajudam a construir um país novo, fazendo esquecer o rancor e as mágoas da guerra.

Filipe D’Avillez e Paulo Aido

Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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As perspectivas para a liberdade religiosa na Serra Leoa continuam a ser positivas, e é pouco provável que a situação se altere num futuro previsível. Dado que a principal fonte de agitação social provém dos elevados níveis de desigualdade económica, os agentes religiosos desempenham um papel importante na educação e na construção da sociedade civil.

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