PORTUGAL: “Fiz o que Ele me pediu”, diz Irmã Helena no fim de nove anos de missão no Haiti, um dos países mais violentos do mundo

O assassinato, em Março, de duas religiosas, colocou de novo o Haiti no centro da atenção do mundo. Neste país, um dos mais pobres e violentos do mundo, as populações estão como que reféns dos gangues armados que impõem as suas regras à força das armas. A Irmã Helena Queijo viveu por lá nove anos e agora, de regresso a Portugal, recorda como foi esse tempo de missão onde, mesmo numa zona rural distante da capital, chegavam os ecos de uma violência assustadora em que ninguém é poupado. Nem a Igreja. “O povo sofre bastante”, diz a religiosa portuguesa em entrevista à Fundação AIS.

Exactamente 15 dias depois de ter chegado a Portugal, após nove anos de missão no Haiti, a Irmã Helena Queijo recebeu a notícia do assassinato, nesse país das Caraíbas, de duas religiosas, Evanette Onezaire e Jeanne Voltaire. A sua reacção foi imediata: “Oh meu Deus! Não conhecia essas irmãs… Que Deus tenha piedade deste povo…”

As duas religiosas estavam na cidade de Mirebalais quando, devido aos ataques de gangues armados que proliferam no Haiti, foram obrigadas a refugiar-se com outras pessoas numa casa. Infelizmente, os atacantes descobriram o esconderijo e mataram todo o grupo. Foi um massacre.

Esta violência extrema faz parte do dia-a-dia neste país em que os gangues ditam as leis perante a impotência das próprias autoridades. A espiritana Helena Queijo, de 60 anos de idade, interrompeu a missão no Haiti onde estava desde 2016, para tomar conta dos seus pais, já idosos, que vivem no norte de Portugal. Apesar de longe, Helena continua a seguir com atenção e preocupação todas as notícias, tudo o que chega do Haiti. Afinal, foram nove anos de uma vida intensa, dedicada ao serviço de uma população que vive na montanha Lavoute, na periferia da cidade de Jacmel. E as notícias são mesmo preocupantes.

ESPIRAL DE VIOLÊNCIA SEM FIM

O Haiti vive uma espiral de violência sem fim e o assassinato cruel das duas religiosas no último dia de Março é apenas um sinal disso. É uma violência que afecta tudo e todos em especial nas grandes cidades e muito em concreto em Port-au-Prince, a capital do país.

“O povo sofre bastante, porque muita gente está na sua casa, isto na capital, e os bandidos chegam e fazem-nos sair. E quando não os matam… eles têm de fugir e são obrigados a ficarem escondidos na rua uns tempos, mas sempre com a esperança de poderem recuperar a casa”, descreve a irmã, relatando o que acontece quase todos os dias especialmente em Port-au-Prince. “E muita gente perdeu os bens, perdeu a casa”, acrescenta.

Pessoas, famílias inteiras que perderam praticamente tudo o que tinham e foram forçadas a fugir. Muitos foram para o norte, outros para o sul, e muitos também para Jacmel, a cidade situada perto da missão das irmãs espiritanas, na zona sudeste do país. Sinal da situação de descontrolo total que se vive país das Caraíbas ao nível da segurança, a Irmã Helena recorda que, quando chegou ao Haiti, em 2016, não havia presidente e agora, quando regressou a Portugal, nove anos depois, também não. “Na história do Haiti praticamente todos os presidentes foram assassinados”, sublinha, lembrando que “esta violência não é recente”.

UM DOS CHEFES DOS GANGUES FOI POLÍCIA

A violência não é recente e não exclui ninguém. Todos estão sob ameaça, todos podem ser assaltados, raptados ou mortos pelos elementos dos gangues. “Eles não raptam somente estrangeiros ou padres ou irmãs, mas também o próprio povo simples. É uma instabilidade e insegurança muito grandes”, diz a irmã portuguesa recordando alguns dos episódios mais graves que afectaram a Igreja nos últimos tempos.

“Houve a invasão das escolas e mesmo do hospital da igreja, a escola e a casa dos espiritanos na capital, o hospital de São Francisco de Sales, as irmãs que foram obrigadas a fugir e a tirar o hábito para passarem disfarçadas no meio do povo, para poderem escapar, porque a casa [onde viviam] estava ameaçada, e então elas decidiram sair. Também as irmãs de Madre Teresa de Calcutá, que fazem um bom serviço, tiveram que evacuar os doentes e sair… Há zonas marcadas que começam a ser ocupadas. Os espiritanos tiveram de sair da outra casa que tinham, de formação, e esconderem-se mais no centro da capital, numa casa de retiros, porque estavam ameaçados”, recorda a irmã Helena Queijo, lembrando que “um dos chefes dos gangues é um ex-polícia…”.

A falha no combate aos gangues, que vão ganhando força e território, foi também sublinhada pelo Arcebispo de Port-au-Prince.

UM PAÍS “EM CHAMAS”

Numa declaração na semana passada ao portal de notícias do Vaticano, D. Max Mésidor – que é também presidente da Conferência Episcopal do Haiti – diz que o país “está em chamas e a sangrar”. E pede apoio.

Nos últimos dias, segundo o prelado, a situação de insegurança agravou-se acentuadamente na sua arquidiocese.

Aqui, 28 paróquias foram completamente fechadas e o trabalho pastoral de outras 40 continua de forma lenta e precária porque muitos bairros da cidade estão nas mãos dos gangues armados.”

Em Janeiro, em declarações à Fundação AIS, também o Bispo de Fort Liberté alertava para o agravamento da situação e para as consequências inevitáveis ao nível da pobreza extrema das populações. “Mal se pode sobreviver”, alertava D. Quesnel Alphonse. “Se tivesse de escolher uma palavra para descrever esta situação, diria ‘asfixia’. É como se nos estivéssemos a afogar. Mal estamos a sobreviver. As coisas estão a tornar-se cada vez mais difíceis e não sabemos o que vai acontecer. A verdade é que sentimos que as pessoas se sentem muito perdidas”, disse o prelado, lamentando que tudo isto está a manchar o ano jubilar que era uma fonte de esperança.

“As pessoas não são apenas pobres, estão agora a viver na miséria. Isto afecta todo o país. O desespero está no máximo, e quando é assim, tudo pode acontecer. É uma pena, especialmente com o Jubileu de 2025, um período que todos nós aguardávamos com esperança.” A Irmã Helena, ainda com a memória fresca do dia-a-dia missionário no Haiti, também não poupa as palavras. “Ninguém está livre de virem, tirarem todos os seus bens ou de raptarem, não há diferença, o que querem é ter dinheiro.”

MISSÃO SEM LUZ NEM ÁGUA

A Irmã Helena Queijo quando chegou ao Haiti, em 2016, teve um choque. Parecia que estava a fazer uma viagem no tempo, de regresso ao longínquo ano de 1975 quando veio com os pais e os irmãos de Angola, juntamente com milhares de outros portugueses que fugiram face aos tumultos que já adivinhavam os tempos da longa guerra civil que estava então a começar após a independência deste país africano.

Quando a irmã, então ainda uma criança de 10 anos, chegou à aldeia dos pais, em Trás-os-Montes, deparou-se com uma realidade que desconhecia, um mundo atrasado, rural, onde não havia electricidade nem água canalizada, nem esgotos, nem casas de banho. Ela vinha de uma Angola então muito mais desenvolvida e moderna. Ficou chocada com Portugal de então, ainda muito subdesenvolvido, sem imaginar que muitos anos depois, já adulta, iria deparar-se com essa mesma realidade na região de Jacmel, no Haiti.

Na Diocese onde a irmã esteve nove anos em missão, as pessoas vivem com medo da fome. A agricultura é de subsistência e tudo depende da chuva. Quando os tempos são de seca, falta a comida e falta quase tudo. Por ali, tal como acontecia na aldeia de Trás-os Montes, não há água canalizada, não há esgotos, nem electricidade. Os fogões são a carvão e lenha, e falta também muitas vezes o gás e a gasolina… As irmãs têm uns painéis solares e isso faz, por ali, toda a diferença, pois permite que tenham uma arca frigorífica, essencial para a conservação de alguns alimentos.

PRATELEIRAS QUASE VAZIAS

Por ali, todos se ajudam mutuamente e assim conseguem escapar à fome. Mas, mesmo assim, é difícil. E são muitos os que, em maior aperto, vão montanha acima até à casa das irmãs, para lhes bater à porta pedindo ajuda, pedindo um naco de comida, alguma coisa… “Se a chuva não vem, começa a sentir-se que o povo não tem o que comer. E sentimos que as pessoas vêm mais pedir à nossa casa. Vêm pedir um bocado de arroz, um bocado de feijão. Todas as pessoas que batem à porta a pedir qualquer coisa, nunca vão de mãos vazias. Mesmo que seja só um bocadinho, porque não podemos dar tudo. Também temos que partilhar com os outros”, explica a irmã.

Muitas vezes, há meses mais difíceis, em que as prateleiras estão quase vazias e não há praticamente nada em lado nenhum. Até que chega o mês de Abril e com ele as primeiras mangas. É a natureza na sua exuberância, a salvar a situação. As mangueiras enchem-se de frutos e as pessoas ficam aliviadas. “Nunca esqueci a expressão duma pessoa que dizia muitas vezes: ‘agora já não há fome, já há mangas para comer’…”

A Diocese de Jacmel, onde as religiosas espiritanas têm a missão, é uma zona calma, apesar de tudo, especialmente em comparação com o ambiente fora de controle na região da capital, Port-au-Prince. No entanto, e apesar disso, há também algum receio. “A zona da Diocese de Jacmel, de momento, ainda continua calma. Embora por causa das perseguições da polícia aos bandidos, aos gangues, alguns estejam a tentar fugir para lá. Mas a polícia está bem activa, a população foi alertada para detectar quem é estranho. E quando nos deslocamos à cidade – eu estive todos os nove anos na montanha – há sempre um bocadinho de medo, mas não é aquele medo, medo… Pronto, estamos nas mãos de Deus, e o que tem de acontecer, tem de acontecer!”

“PUDE FAZER O QUE ELE ME PEDIU”

Foram nove anos de missão no Haiti. Nove anos muito intensos de uma vida totalmente entregue às populações locais, à educação das crianças, às suas famílias. Foram nove anos que agora, quando olha para trás, são já recordados com saudade. “Para mim, o balanço é positivo no sentido da lição, do trabalho missionário que fiz. E com a graça de Deus e a proteção que Ele me concedeu, pude fazer o que Ele me pediu em cada dia. Gostei muito”, diz, pedindo desculpa por misturar ainda um pouco de francês nas suas palavras, sinal de que ainda não se desligou por completo do Haiti.

A Fundação AIS tem apoiado a Igreja no Haiti ao longo dos últimos anos com dezenas de projectos. São iniciativas que incluem o apoio à formação de seminaristas, religiosos, catequistas e leigos, programas para jovens e pessoas deslocadas das suas casas, equipamento para três estações de rádio diocesanas, a instalação de painéis solares para a Conferência Episcopal Haitiana e a Arquidiocese de Port-au-Prince, bem como retiros e Estipêndios de Missa para padres e ajuda de emergência para religiosas.

Paulo Aido | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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O Haiti está à deriva em direcção a tornar-se um Estado falhado. A crise política e económica alimentou um aumento da violência dos gangues territoriais, provocando uma crise social e humanitária catastrófica. Os raptos para exigir resgate, incluindo do clero, e os assassínios relacionados com gangues aumentaram exponencialmente. A insegurança generalizada do país tem afectado todos os direitos fundamentais, incluindo a liberdade religiosa.

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