SUDÃO: Praça junto da Catedral de Al Obeid é “campo de batalha”, diz responsável de projectos da Fundação AIS

SUDÃO: Praça junto da Catedral de Al Obeid é “campo de batalha”, diz responsável de projectos da Fundação AIS

O Sudão está a ferro e fogo, com combates ferozes desde 15 de Abril entre o exército sudanês e as Forças de Apoio Rápido (RSF), um grupo paramilitar. Até ao momento, já se contabilizaram mais de 400 mortos e cerca de 4 mil feridos. Kinga von Schierstaedt, Chefe de Projectos da AIS no Sudão tem estado em contacto com parceiros no terreno da fundação pontifícia e os relatos que escutou são inquietantes. Centenas de estrangeiros, incluindo portugueses, foram já retirados do país.

O Sudão está a viver uma dramática luta pelo poder, uma luta entre dois generais, Abdel Fattah al-Burhan, o actual presidente, que tem o exército sob as suas ordens, e Mohammed Hamdan Daglo, o vice-presidente, também conhecido por Hemedti, e que controla a RSF, as Forças de Apoio Rápido. Os combates já causaram mais de 400 mortos e cerca de 4 mil feridos, embora se acredite que estes números devem ser muito mais elevados. Embora não se trate de um conflito religioso, os cristãos são também vítimas de toda esta violência que alastrou já para algumas das principais cidades do país. “Em El Obeid estão a ter lugar combates intensos. A praça em frente da catedral tornou-se um campo de batalha porque há um campo de RSF mesmo ao lado”, explicou a responsável de projectos a Maria Lozano, directora de comunicação da Fundação AIS. “Na quinta-feira dois grandes engenhos explosivos caíram nas instalações da igreja; um partiu as janelas da catedral e o outro destruiu a casa paroquial, adjacente. Graças a Deus, nada aconteceu ao padre, pois já não se encontrava em casa”, disse ainda, ressalvando que “há sempre o perigo de que os combates se propaguem, porque se trata de uma luta de poder e as posições são muito endurecidas”. Mas a situação não é igualmente grave em todo o Sudão. Kinga falou também com um parceiro de projecto em Kosti, no sul do país, na fronteira com o Sul do Sudão, e aí as coisas estão calmas.

Falta de alimentos e de água
Desde que os combates começaram que Kinga von Schierstaedt, que é também coordenadora de Projectos da Ajuda à Igreja que Sofre em África, tem estado em contacto com alguns dos parceiros da fundação pontifícia no Sudão. “Acabei de receber um telefonema de um parceiro de projecto que está no Norte de Cartum, perto de um local onde as Forças de Apoio Rápido se encontram encurraladas”, explicou. “Durante a chamada, conseguia ouvir o tiroteio como som de fundo. Ele diz que as ruas estão vazias, como numa cidade fantasma: não há carros a circular, não se vê nem se ouve ninguém na vizinhança. Também não podem sair de casa, ou pelo menos já não se atrevem a sair.”, acrescentou. Este ambiente de autêntica guerra civil parece ter apanhado grande parte das pessoas de surpresa. “Como ninguém estava preparado, não se tinham abastecido de alimentos; e mesmo que o tivessem feito, isso não os teria ajudado por muito tempo, porque a rede eléctrica não está a funcionar e, por isso, o frigorífico só funciona quando utilizam o gerador durante algum tempo, usando o seu pequeno fornecimento de gasóleo”, disse ainda Kinga Schierstaedt. “Pior que o problema dos alimentos, porém, é a falta de água. Como já não há água corrente, tiveram de bombear água de um poço que só existe para irrigar o jardim e cuja água tem de ser fervida. Durante o dia, a temperatura pode chegar aos 40°C à sombra.”

O que está a acontecer?
Os combates entre as forças militares comandadas pelos dois generais têm de ser entendidos à luz de uma luta pela tomada do poder no Sudão. Kinga von Schierstaedt explica que se está a assistir a “uma tentativa de Hemedti de derrubar al-Burhan”, e que isto “é o culminar da tensão que se tem vindo a formar no país desde o golpe de Estado de Outubro de 2021”. “Nesse golpe, os dois derrubaram o Governo de transição que foi criado após a remoção do ditador Umar al-Bashir, em Abril de 2019”, diz a responsável da AIS. “Na verdade, não se trata de ideologia mas de quem irá governar e como, interesses, poder, riqueza e a integração da RSF. Hemedti vê a sua RSF como decisiva para a segurança do país e exige mais poder. As negociações sobre a integração deste grupo paramilitar no exército foram um obstáculo entre os dois, e a decisão de Al-Burhan de deslocar as tropas da RSF em várias partes do país, uma vez que via Hemedti como potencialmente minando o seu poder, foi a centelha que levou à tentativa de derrube.” Kinga Schierstaedt acrescenta ainda outro dado importante para a compreensão desta guerra. “O Sudão é o terceiro maior produtor de ouro de África, e Hemedti é proprietário de minas de ouro no norte do país. Até 16 mil milhões de dólares vão todos os anos para os Emirados Árabes Unidos. Hemedti tem feito do ouro o seu negócio. O ouro é o seu poder e um dos seus interesses…”

Comunidade cristã
A violência que irrompeu nas ruas das principais cidades e que já obrigou a várias operações de repatriamento de cidadãos estrangeiros, nomeadamente dos Estados Unidos e da União Europeia –o governo de Lisboa confirmou ontem a saída do país de 21 portugueses –, está a afectar toda a população, incluindo a pequena comunidade católica. “A Igreja Católica no Sudão é muito pequena, uma vez que mais de 95% da população é muçulmana. Como não se trata de um conflito ideológico ou religioso, todos os cidadãos são igualmente afectados. Crentes, padres e religiosos não podem sair das suas casas. A Missa de Domingo foi suspensa e os padres já não podem celebrar a Missa diária na igreja. Nas zonas de crise, a vida de fé continua apenas nas casas das pessoas”, explica ainda a responsável de projectos da Fundação AIS. Mas seguramente que a violência vai ter gravíssimas repercussões para todos, incluindo a comunidade cristã. “O país já se encontrava num estado económico desesperado: enorme inflação e sem liquidez. O conflito está a fazer com que os preços subam ainda mais e as pessoas não têm dinheiro”, explica ainda Kinga, alertando também para o facto de muitas pessoas estarem “a abandonar as zonas do interior da cidade onde o tiroteio está a ter lugar”. “Além disso – acrescenta – algumas não têm electricidade, nem a água de que necessitam para sobreviver, pelo que estão a fugir para a casa de amigos e familiares, na sua maioria fora da cidade. Ainda não temos quaisquer relatos de grandes vagas de refugiados ou campos de refugiados, mas há seguramente uma fuga das cidades.”

“Pedem-nos orações…”
A situação é grave do ponto de vista humanitário e de segurança. Com as ruas tomadas por soldados que se combatem encarniçadamente, pouco mais as populações podem fazer do que rezar. “Neste momento, as posições estão incrivelmente endurecidas. Os nossos contactos dizem que se nenhum dos grupos ceder ou ganhar, não acreditam que haja um fim rápido para o conflito. Estamos todos a rezar para que no Sudão chegue ao poder um Governo que procure justiça e paz. É isso que todos os nossos contactos pedem. Eles dizem-nos que, de momento, não os podemos apoiar com ajuda material. Dizem-me: ‘A única coisa que nos pode dar força agora é saber que somos sustentados pela oração’”, explica a responsável de projectos da Fundação AIS no Sudão. E orações foi mesmo o que pediu o Santo Padre no domingo passado. Após a oração mariana do Regina Coeli, o Papa Francisco renovou a sua proximidade a este país africano que se está a transformar num campo de batalha. “Infelizmente, a situação no Sudão continua grave: renovo meu apelo mais uma vez para que cesse a violência o mais rápido possível e se retome o caminho do diálogo. Convido todos a rezar pelos nossos irmãos e irmãs sudaneses.”

PA | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

Relatório da Liberdade Religiosa

Em Setembro de 2020, o Sudão, após 30 anos de regime islâmico, tornou-se um Estado constitucionalmente laico. O Pe. Peter Suleiman afirmou que o povo Sudanês pode agora “adorar e praticar as suas várias crenças religiosas sem medo”. Um ano mais tarde, o regime autoritário, e o medo, estavam de volta. Em 2022, as manifestações contra o regime militar intensificaram-se na grande Cartum, organizadas pelos comités de resistência.

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