Um homem sozinho enfrentou em Hyderabad uma multidão em fúria que procurava atacar uma família hindu acusada de blasfémia. Gazi John, o herói, é um muçulmano xiita paquistanês, está profundamente envolvido nas questões do diálogo inter-religioso e participa regularmente em encontros organizados por um frade franciscano parceiro de projectos da Fundação AIS. Foi num destes encontros que ele contou o que aconteceu.
Num país marcado pela violência e perseguição religiosa contra as minorias, há também histórias de coragem e altruísmo que merecem ser contadas. Uma destas histórias foi conhecida durante um dos vários encontros de diálogo inter-religioso organizados em Hyderabad pelo frade franciscano Shahzad Khokhar, parceiro de projectos da Fundação AIS. Um homem, sozinho, enfrentou uma multidão em fúria que procurava atacar uma família hindu acusada de blasfémia.
O homem, Gazi Salahuddin John, é muçulmano xiita e costuma participar regularmente nestes encontros e numa destas reuniões contou à Fundação AIS como tudo aconteceu. “Um hindu tinha sido injustamente acusado de queimar o Alcorão”, começou por explicar. “Cada vez mais homens se foram juntando em frente ao prédio onde a família vivia, mas não podiam entrar porque a porta estava fechada. Tentaram então colocar uma escada contra o edifício. Havia também alguém com uma arma, mas eu consegui tirar-lha das mãos”, recordou. No Paquistão, onde por vezes estes ataques motivados pela intolerância religiosa acabam em grande violência, a coragem demonstrada por este muçulmano ganha uma relevância particular. No encontro, Gazi falou da importância de as pessoas conseguirem assumir no dia-a-dia que o diálogo entre as religiões precisa de ser alimentado com gestos concretos. O diálogo, disse, “é o que somos”.
O Bispo Samson Shukardin OFM, de Hyderabad, que iniciou estes encontros de diálogo inter-religioso, confirmou que a situação na região de Sindh, no leste do Paquistão, é, apesar de tudo, melhor do que noutras áreas e noutros países onde há tensão entre religiões. A presença de líderes religiosos – sikhs, xiitas, sunitas, hindus e cristãos – nos encontros organizados pelo Padre Shahzad Khokhar ganha assim um significado também particular, diz ele.
Aprender a respeitar os outros
Estes encontros são sementes de paz e harmonia que permitem que as pessoas se vão conhecendo melhor, se vão estimando apesar das diferenças. “Respeitamos os outros. Mostramos que o fazemos não só com palavras, mas também com actos. Tenho a certeza de que este bom trabalho lançará as bases para nos ajudarmos uns aos outros”, disse o Bispo à Fundação AIS. Estas iniciativas de diálogo entre religiões são também importantes para que a comunidade compreenda que a exclusão e discriminação das minorias está presente no dia-a-dia e por vezes de forma insidiosa. O mais recente Relatório da Fundação AIS sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, lançado dia 22 na Assembleia da República, em Lisboa, explica isso de forma clara. “Os exemplos de discriminação civil são abundantes, incluindo anúncios públicos de emprego para trabalhadores de saneamento, varredores de rua e limpadores de esgotos que são ‘reservados a não muçulmanos’ e iniciativas de protecção contra inundações que ignoram as comunidades cristãs e hindus”, pode ler-se no documento.
O Relatório aponta ainda para outras situações bem mais graves e que ocorrem no Paquistão por causa da discriminação religiosa. “A perseguição sistémica também continua a ser um problema grave, tendo aumentado ao longo do período de dois anos [2021 e 2022, a que o Relatório reporta], passando a incluir: rapto e escravização sexual de raparigas cristãs e hindus sob o pretexto de conversão ao Islão e de casamento com o raptor; leis de blasfémia que violam os direitos das minorias e ataques extrajudiciais perpetrados por multidões.” O Relatório refere também a área da educação, que se tem vindo a tornar cada vez mais islamocêntrica, “o que contribui para a discriminação e para atitudes negativas em relação aos membros das minorias religiosas”.
Os alertas de D. Sebastian Shaw
Esta questão ficou também bem patente durante a visita, em Maio, a Portugal, do Arcebispo de Lahore. D. Sebastian Shaw, que participou em Évora na inauguração de uma exposição da Fundação AIS, afirmou que a questão dos raptos, por exemplo, “é um grande problema”. “Muitas vezes as raparigas cristãs são raptadas e desde que sejam convertidas ao Islão não podem voltar a suas casas”, explicou, acrescentando que tem havido reuniões com responsáveis do Conselho Islâmico para se sublinhar a ideia de que raptar alguém é sempre um crime. “Quando uma rapariga é raptada, é um crime que é cometido. A sociedade civil e algumas ONG’s defendem isto, mas os grupos radicais não o entendem”, disse ainda.
O Arcebispo de Lahore recordou diversos ataques contra a comunidade cristã nos últimos anos, a tal ponto, explicou, que “o governo nos pediu para promovermos a protecção das nossas igrejas”. E referiu o caso do ataque em Março de 2015 a uma igreja em Lahore, em que um jovem, Akash Bashir, deu a vida para impedir uma tragédia se um terrorista fizesse deflagrar no interior do templo o cinto de explosivos que trazia consigo à cintura. “Está em fase de preparação o seu processo de beatificação”, esclareceu. “Somos uma comunidade muito pequena, mas muito forte”, disse ainda. “É muito perigoso ser cristão no Paquistão, mas Deus deu-nos uma missão: viver neste país e sermos exemplo para todos”, explicou. Apesar deste cenário tão complexo, há sinais de esperança. A história de Gazi John, que enfrentou sozinho em Hyderabad uma multidão em fúria que procurava atacar uma família hindu acusada de blasfémia, é disso um bom exemplo…