Kinza tem apenas 14 anos de idade, vive em Lahore, uma das principais cidades do Paquistão, e foi raptada quando estava em casa, a 19 de Setembro do ano passado, por cinco homens. Violentada, forçada a converter-se ao Islão e a casar com um dos raptores, a jovem acabou por ser libertada depois de os seus pais terem alertado a polícia e de o caso ter chegado ao tribunal. Mas os problemas não acabaram aí e a família tem vindo a ser ameaçada…
Não é apenas uma história, ou mais uma história. É um autêntico drama que está a acontecer no Paquistão. Raparigas, adolescentes e mulheres pertencentes a minorias religiosas são raptadas, violentadas e obrigadas a casar, depois de serem também forçadas a converterem-se ao Islão. Todos os anos, centenas de raparigas caem nas malhas de extremistas que sentem poder agir com impunidade. Dados do Parlamento Europeu de 2018 apontavam para cerca de mil casos todos os anos. A minoria cristã é uma das mais atingidas. Muitas das raparigas raptadas nunca mais regressam ao seio das suas famílias, mas aquelas que conseguem libertar-se dos seus sequestradores, continuam a ser, muitas vezes, alvo de intimidação. Por isso, é particularmente relevante escutar o que estas jovens ou mulheres cristãs têm para contar e denunciar. É que, para o fazerem, precisam de muita coragem.
Setembro de 2022
Kinza Sindhu é muito jovem ainda, tem apenas 14 anos de idade, mas é suficientemente destemida para não ficar em silêncio. Kinza contou a sua história a Kamran Chaudhry, da Fundação AIS. Falou sempre em urdu, a sua língua natal. Com a ajuda de um intérprete, ela voltou a recordar o que lhe aconteceu no dia 19 de Setembro de 2022. “Os meus pais, ambos cozinheiros, estavam fora no trabalho. A minha irmã mais velha estava na cozinha quando ouvi uma pancada na porta da frente, por volta do meio-dia. Quando abri a porta, homens armados puxaram-me para fora e empurraram-me para dentro de uma carrinha. Reconheci dois deles, mas os restantes eram desconhecidos.” Começa assim a descrição do que aconteceu há cerca de meio ano. Obrigada a tomar um comprimido, Kinza ficou inconsciente. Foi levada para um lugar desconhecido onde foi violada sob a ameaça de uma arma. “No dia seguinte, o rapaz que me violou trouxe um homem barbudo para registar o nikah [casamento muçulmano]. Eu disse-lhes que era cristã e recusei repetir os versos árabes. Disseram-me para apenas ouvir com calma. Obrigaram-me a assinar um papel branco e a tirar as minhas impressões digitais. Fizeram também vídeos da cerimónia com o telefone.”
Telefonemas ameaçadores
Os pais de Kinza, entretanto, mal souberam o que tinha acontecido, foram a uma esquadra da polícia para apresentar queixa, pedindo ajuda para a libertação da sua filha. Começou aí uma batalha legal. O raptor que violou Kinza e que procurou forjar a sua conversão ao Islão e também o casamento, apresentou às autoridades o ‘nikahnama’, ou seja, o contrato de casamento islâmico. O caso foi levado ao Tribunal de Lahore. Perante o juiz, a jovem cristã contou a sua história, negando a conversão. “O juiz deixou-me voltar para a minha família após a segunda audiência”, relata Kinza. Mas os problemas não acabaram aqui. Como acontece com frequência sempre que alguma jovem consegue libertar-se das mãos dos seus raptores, estes ameaçam as suas famílias, a ponto de, por vezes, serem forçadas a mudar de casa, abandonando o bairro ou até a cidade onde vivem. Isso mesmo está a acontecer agora com Kinza. “Estou preocupada com a minha família que ainda está a receber chamadas ameaçadoras de números desconhecidos”, diz ela. Ao telefone, ameaçam os seus pais de que, se ela não voltar para o raptor, serão apanhados e agredidos. “Eles estão a planear mudar-se para outro bairro”, diz a jovem cristã. “Preocupo-me com eles”, acrescenta ainda.
“Quero uma vida normal…”
Em toda esta história, ao longo destes seis meses de provação, Kinza Sindhu sentiu coragem na fé, sentiu o conforto da oração. Até quando estava sequestrada, isso aconteceu. “Eu rezava no meu coração, por vezes recitava o Rosário”, confessou durante a conversa com a Fundação AIS. Durante este tempo, houve muitos momentos de desespero, de quase resignação. No entanto, hoje reconhece que nunca esteve abandonada. “Tinha perdido toda a esperança. Foi Deus que enviou ajuda sob a forma dos advogados que lutaram pelo meu caso e me trouxeram de volta.” Agora, apesar das ameaças dos raptores, Kinza pensa já no futuro. “Desisti da escola durante a 5ª classe em 2019. Agora quero continuar os meus estudos e tentar levar uma vida normal. Quero fazer algo grande com a minha vida e tornar-me uma agente da polícia. Quero ajudar os outros…”
Mapa de impunidade
A situação das mulheres e raparigas pertencentes a minorias religiosas em países como o Paquistão, Nigéria ou Egipto, por exemplo, é uma tendência preocupante, com milhares de vítimas a serem raptadas e transformadas em escravas sexuais, e foi denunciada por Marcela Symanski, representante da Fundação AIS junto da União Europeia, numa cimeira em Washington sobre a Liberdade Religiosa Internacional, que decorreu entre os dias 31 de Janeiro e 1 de fevereiro deste ano. Symanski, que é também editora do Relatório bienal sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, da Ajuda à Igreja que Sofre, alertou para o perigo de se usar indevidamente a expressão ‘casamento forçado’. “O termo combina uma palavra má e uma boa”, sendo que, falar de ‘conversão’ e ‘casamento’ é um eufemismo. “A realidade é que é rapto e escravidão sexual com o consentimento da religião”, explicou. “Localmente, em países como o Paquistão, onde esta é uma ocorrência comum, o rapto, violação e ameaças de morte são crimes puníveis, mas se lhes chamar ‘casamento’ de qualquer tipo, subitamente os crimes civis estão fora de vista, e a vítima está mais longe da Justiça”, acrescentou Szymanski. Esta situação revela uma tendência preocupante e permite até falar num “mapa de impunidade”.
Relatório da Fundação AIS
Esta realidade, de jovens adolescentes e mulheres cristãs serem raptadas, violentadas e forçadas a casar e a converterem-se ao Islão, está documentada num Relatório editado pela Fundação AIS em Portugal em Janeiro do ano passado. Em comum a todos os casos analisados – que incluem situações ocorridas no Paquistão, mas também na Nigéria, Egipto ou Moçambique, por exemplo –, está o facto de os violadores, os raptores, pertencerem à comunidade muçulmana e olharem para as mulheres e raparigas cristãs com absoluto desprezo. O trabalho da AIS permite concluir que, em alguns destes países, nomeadamente a Nigéria, cerca de 90% de todas as raparigas e mulheres raptadas por extremistas islâmicos pertencem à comunidade cristã.
Os alertas de D. Sebastian Shaw
No ano passado, de passagem por Portugal, D. Sebastian Shaw , Arcebispo de Lahore, falou desta temática numa entrevista com a Fundação AIS e lembrou que não se trata apenas de uma questão religiosa, mas sim de direitos humanos. “Temos o dever de divulgar o que está a acontecer, para prevenir estes casos”, disse o prelado, lembrando que “os casos de rapto, violação sexual, conversão e casamento forçado, são um problema da sociedade paquistanesa que o governo está a tentar controlar”. Ao contrário do que se poderá pensar, esta questão não envolve apenas raparigas. “Por vezes, os rapazes também são raptados, abusados sexualmente e muitas vezes mortos”, disse ainda. “Imaginem o drama destes pais – acrescentou o bispo – que preparam as mochilas dos filhos, que os mandam para a escola e que depois já não regressam porque são raptados? Algumas vezes aparecem os corpos e podem fazer os funerais, o luto…. Mas noutros casos, não. Continuam desaparecidos. Resta-lhes, como pais, chorar o desaparecimento dos seus filhos.” No caso do Paquistão, o Parlamento Europeu concluiu, em 2018, que se está de facto perante uma situação de enorme violência contra uma comunidade religiosa vulnerável. “As formas graves de violência contra mulheres cristãs vão do homicídio à violência sexual e à violência doméstica, passando pelos ataques com ácido, sequestros e pelo assédio”, pode ler-se num relatório do Parlamento Europeu editado nesse ano sobre a possibilidade de o Paquistão poder ser incluído no lote de países abrangidos pelo Sistema de Preferências Generalizadas, que favorece as trocas comerciais.