HAITI: “Não podemos cruzar os braços nem desanimar”, diz irmã espiritana face à violência e à ameaça de raptos

A irmã Helena Queijo é portuguesa e está no Haiti desde 2016. Numa altura em que este país caribenho atravessa um momento crítico, com uma gravíssima crise de segurança a ponto de se temer a eclosão de uma guerra civil, esta religiosa espiritana confessa que o medo está presente no dia-a-dia das populações mas a sua luta, diária, constante, é, isso sim, contra a pobreza. “O grande desafio de cada dia é conseguir dar uma refeição quente a todas as crianças”, confessa à Fundação AIS. A irmã Helena é responsável, juntamente com mais cinco religiosas, por duas comunidades numa zona rural, onde a Igreja dá apoio a mais de três centenas de crianças e famílias.

A crise de segurança no Haiti agrava-se de dia para dia. O país está a enfrentar uma epidemia de raptos, de violência, com bandos armados a controlar ruas, bairros inteiros na capital, a cidade de Port-au-Prince. A situação é tão grave que alguns países, temendo mesmo a eclosão de uma guerra civil, começaram já a retirar os seus diplomatas e cidadãos mais vulneráveis. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, França e Alemanha.

É neste contexto de extrema violência, a que nem a Igreja tem escapado, com o sequestro também de diversas religiosas e sacerdotes, que a irmã Helena Queijo continua a cumprir a sua missão junto das populações mais pobres que vivem na Montanha Lavoute, na Diocese de Jacmel, na zona sudeste da ilha.

Esta religiosa espiritana está no Haiti há precisamente 8 anos. Chegou à Montanha Lavoute no dia 15 de Março de 2016. “Nós somos 6 irmãs, de diferentes nacionalidades, vivemos em duas comunidades, uma está situada na periferia da cidade de Jacmel, a 18 quilómetros daqui, a que nos liga uma estrada de rocha e terra batida. A outra comunidade é esta onde me encontro, situada aqui na Montanha, em meio rural”, explica à Fundação AIS.

A população de Montanha Lavoute vive essencialmente da agricultura, está depende da chuva e do pequeno comércio. Com a situação actual, que se vive já algum tempo, muitas famílias foram obrigadas a regressar às suas aldeias ou vilas de origem, para fugir da violência e da falta de segurança. Famílias que foram obrigadas a deixar tudo para trás e regressaram sem nada.”

O MEDO DOS RAPTOS E O PAPEL DA IGREJA

A “situação actual”, que refere a religiosa portuguesa, é uma profunda crise de segurança que já levou, inclusivamente, as autoridades a decretaram, no início de Março, o estado de emergência e o recolher obrigatório após gangues armados terem atacado duas prisões na cidade de Port-au-Prince, libertando milhares de reclusos.  

Neste contexto, até por causa dos inúmeros casos de raptos, há um sentimento de medo que atravessa toda a sociedade e a que não escapa ninguém, nem sequer a Igreja. “Infelizmente, não é só a Igreja católica que está na mira dos gangues. É claro que raptar membros da Igreja dá mais nas vistas e chama mais a atenção da comunidade internacional”, afirma a irmã Helena. “Mas em cada dia muitas pessoas são raptadas e de todas as idades, categorias, católicos, protestantes e outros. Muitos ficam meses em cativeiro, outros são libertados e outros nunca mais aparecem”, acrescenta a religiosa na entrevista à Fundação AIS.

No entanto, apesar da instabilidade, ou talvez até por causa dela, a Igreja Católica continua a ser uma instituição de referência no Haiti. E isso vê-se no trabalho destas irmãs mesmo numa zona rural distante da cidade de Port-au-Prince. “Aqui onde estamos, na nossa missão concreta, trabalhamos em conjunto com todas as Igrejas cristãs existentes neste meio rural onde nos encontramos. Todas fazem um belo trabalho com as crianças e o povo. Contudo a Igreja Católica ainda é uma referência no Haiti. Muitos reconhecem que são as escolas, os centros de saúde, os hospitais orientados pela Igreja ou por Congregações Religiosas que têm mais qualidade”, diz a irmã. “Infelizmente, a Igreja Católica no Haiti não tem meios suficientes para dar respostas a tantas necessidades”, acrescenta a irmã, lembrando que, por exemplo, “muitas Igrejas continuam por reconstruir, após o terramoto…” de 2010, que deixou um profundo rasto de destruição e mais de 200 mil mortos.

“SEM AJUDA TERÍAMOS DE FECHAR A MISSÃO”

A missão espiritana tem, actualmente, seis religiosas e está presente em duas comunidades. Uma, está situada na periferia da cidade de Jacmel, na Baía da Ferradura, e a outra fica na montanha, num ambiente marcadamente rural. “Trabalhamos com crianças, adolescentes e jovens”, sintetiza a irmã.

No conjunto, estas religiosas ocupam-se de várias valências, como um Centro de Nutrição, para os que têm necessidades especiais; uma escola primária que funciona até ao nono ano e que acolhe 172 crianças e jovens; e ainda um Jardim-de-infância com 126 crianças dos 2 aos 6 anos. Tudo isto representa uma enorme responsabilidade. 

A fuga das populações dos meios urbanos por causa da violência trouxe mais pessoas, mais famílias e, claro, mais trabalho para as irmãs, obrigando a uma gestão muito cuidadosa dos parcos recursos disponíveis. “Cada dia, aumenta o número de pessoas que nos pedem ajuda, em alimentos ou para questões de saúde, mas, por vezes, não somos capazes de dar resposta a tantas solicitações. A nossa missão vive de pessoas amigas, familiares, pessoas generosas que todos os meses enviam uma pequena ajuda, que para nós é uma grande ajuda. Sem esse apoio, nós teríamos que fechar a missão”, explica a irmã.

Apesar de todo este esforço, apesar da dedicação destas religiosas, há ainda muitas famílias que não conseguem pagar a anuidade da escola ou os livros e isso reflecte-se num número ainda elevado de analfabetismo nesta região.

“DEPENDEMOS DA CHUVA PARA TER ÁGUA…”

Para a irmã, a luta, diária, é para conseguir alimentar todas estas crianças. Algo que, com a falta de recursos, se torna cada vez mais difícil. “Na escola primária, o grande desafio de cada dia é conseguir dar uma refeição quente a todas as crianças. Para a sua confecção, utilizamos lenha, mas para lutarmos contra a desflorestação do planeta e especialmente do Haiti, queremos comprar um fogão industrial a gás para evitar o uso contínuo da lenha, mas ainda não conseguimos os apoios necessários para isso”, reconhece a religiosa portuguesa. O retrato que a irmã faz da região do Haiti onde vive é desolador.

Aqui, onde se encontra a missão, falta de tudo, desde infraestruturas básicas, como água, saneamento e energia. A maioria das pessoas vive em casa de madeira e telhados de zinco, muito frágeis e precárias. Aqui, dependemos da chuva para ter água. Quando chove, as pessoas podem guardar em bidões ou depósitos de plástico, por vezes a seca é grande e esta reserva é insuficiente, por vezes têm de fazer quilómetros para ir a uma nascente.”

A pobreza, o analfabetismo, a situação muito difícil em que se encontram muitas famílias, tudo isso faz parte do quotidiano da missão deste punhado de mulheres consagradas. Sobre todas elas pende sempre o receio da violência, da insegurança extrema em que vive o Haiti.

Apesar de a missão espiritana estar numa zona relativamente tranquila, ninguém pode garantir que, um dia, essa pacatez não se transforme com a chegada de bandos armados, com o rapto de pessoas, com ataques violentos. A irmã tem medo? “É claro que tenho receio, assim como todas as pessoas que vivem aqui na Montanha Lavoute. Vivemos o dia-a-dia na esperança de que esse dia nunca chegue. Eu ponho a minha confiança em Deus que me ama, me chama e me envia cada dia nesta missão concreta onde me encontro. Ele dará a força e a coragem para viver todos os momentos com confiança e esperança. Pois muitos irmãos e irmãs nossas enfrentam cada dia esta instabilidade, insegurança e violência. E é em solidariedade com eles que não podemos cruzar os braços nem desanimar mas levar em frente todas as nossas actividades do dia-a-dia, na alegria e na confiança”, diz Helena Queijo.

“SOMOS APENAS UMA GOTINHA DE ÁGUA…”

As irmãs espiritanas procuram nestas duas missões na Diocese de Jacmel socorrer o maior número possível de famílias, de homens, mulheres e crianças em necessidade. O retrato é desolador. A irmã Helena chega a dizer que na zona onde se encontra a missão “falta de tudo”. Menos a fé. E a coragem.

Tudo isso ajuda a alimentar o trabalho da Igreja, tudo isso ajuda a fazer da presença deste punhado de mulheres, de irmãs, um foco de esperança num país onde tudo parece estar a desabar por estes dias. “Temos consciência que não somos capazes nem podemos dar resposta a todos os desafios, somos apenas uma pequena gotinha de água que cada dia tenta fazer e dar o seu melhor”, diz a irmã Helena, agradecendo a preocupação da Fundação AIS, a preocupação dos benfeitores da Fundação AIS pela situação dramática que se vive actualmente no Haiti. “Obrigada por todo o apoio que dão a todas as Igrejas do mundo inteiro, que Deus vos abençoe!”

No ano passado, a Fundação AIS apoiou a Igreja no Haiti com cerca de 60 projectos. São iniciativas que incluem o apoio à formação de seminaristas, religiosos, catequistas e leigos, programas para jovens e pessoas deslocadas das suas casas, equipamento para três estações de rádio diocesanas, a instalação de painéis solares para a Conferência Episcopal Haitiana e a Arquidiocese de Port-au-Prince, entre outros, bem como retiros e Estipêndios de Missa para padres e ajuda de emergência para religiosas.

Paulo Aido | Departamento de Comunicação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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O Haiti está à deriva em direcção a tornar-se um Estado falhado. A crise política e económica alimentou um aumento da violência dos gangues territoriais, provocando uma crise social e humanitária catastrófica. Os raptos para exigir resgate, incluindo do clero, e os assassínios relacionados com gangues aumentaram exponencialmente. A insegurança generalizada do país tem afectado todos os direitos fundamentais, incluindo a liberdade religiosa.

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