Numa altura de crescente tensão político-militar na península coreana, com o regime de Pyongyang a estreitar relações com Moscovo, a Igreja fala no “sonho da paz” e dá como exemplo a vida e o martírio do Santo André Kim Taegon, que viveu “e estudou teologia em Macau”, que era então, no século XIX, uma colónia portuguesa e um lugar de referência para a Igreja Católica na Ásia.
“O futuro não se constrói com a força violenta das armas, mas com a força suave da solidariedade”, disse o Papa num encontro com um grupo de fiéis da Coreia do Sul, por ocasião da inauguração no Vaticano, no passado dia 16, de uma estátua ao primeiro mártir coreano, André Kim Taegon.
Nesse encontro, e numa ocasião em que crescem sinais inquietantes de tensão político-militar nesta região do globo, o Papa lembrou a vida deste jovem e pediu a sua intercessão “para que se realize o sonho da paz na península coreana”.
“Quando André Kim estudou teologia em Macau, foi testemunha dos horrores das Guerras do Ópio. Naquele contexto de conflito, conseguiu ser semente de paz, levando todos ao encontro e ao diálogo”, referiu o Santo Padre.
Explicando que “não se pode seguir a Jesus, sem abraçar a sua Cruz”, o Papa lembrou a história de coragem não só de André Kim Taegon mas também da sua família. “Ele dedicou-se ao anúncio da Boa Nova de Jesus com nobreza de espírito, sem recuar diante dos perigos e dos muitos sofrimentos. Sabemos que seu pai e avô também foram martirizados e sua mãe obrigada a viver como mendiga”, disse o Papa.
Referindo-se directamente à Igreja coreana, Francisco recordou que “ela nasce dos leigos e é fecundada pelo sangue dos mártires; suas raízes são regeneradas pelo generoso impulso evangélico das testemunhas e pela valorização do papel e dos carismas dos leigos”. Deste ponto de vista, o Papa falou na “profecia para a Península Coreana e para o mundo inteiro: ser companheiros de viagem e testemunhas de reconciliação, pois o futuro não se constrói com a força violenta das armas, mas com a força suave da solidariedade”.
Santo André e a vida em Macau
A história do Santo André Kim Taegon, decapitado no dia 16 de Setembro de 1846, aos 25 anos de idade, tem, como lembrou o Papa Francisco, um passado ligado também, de alguma forma, a Portugal.
Nascido em 1821 numa família de cristãos convertidos, foi baptizado aos 15 anos de idade, tendo estudado no seminário de São José, em Macau, que era, então, um lugar central da vida da Igreja para toda a Ásia. Durante cerca de seis anos, o jovem André viveu na antiga colónia portuguesa onde existe também uma estátua sua, no Jardim de Camões, junto à Igreja de Santo António, que costumava frequentar. Uma estátua bem mais pequena do que aquela que agora se encontra no Vaticano, com seis toneladas, quatro metros de altura e toda esculpida em mármore.
A estátua do Santo André Kim Taegon, o primeiro sacerdote e mártir da Coreia, foi abençoada no dia 16 num nicho do lado de fora da Basílica de São Pedro, no Vaticano, numa cerimónia a que assistiram dezenas de fiéis e que incluiu a celebração de uma missa presidida pelo cardeal Lazzaro Heung-sik You, que foi bispo de Daejeon e é, actualmente, o prefeito do Dicastério para o Clero.
A repressão na Coreia do Norte
A inauguração desta estátua faz recordar que a Coreia do Norte é um dos países do mundo onde a prática religiosa é mais reprimida. Ainda muito recentemente, em Junho, o prefeito do Dicastério para o Clero referiu, no Brasil, “a situação muito difícil” em que se encontra a comunidade cristã neste país.
“Há mais de 70 anos, não temos notícias dos nossos irmãos na Coreia do Norte. Lá não há bispos, nem sacerdotes. Para nós, é muito doloroso”, manifestou o Cardeal You Heung-sik, num encontro com católicos oriundos da península coreana. “Enviamos continuamente mensagens para a Coreia do Norte, na tentativa de abrir um diálogo multilateral e diplomático para resolver essa situação. Eu também já me coloquei à disposição do Santo Padre para, em seu nome, intermediar o diálogo entre as Coreias. Se ele considerar necessário, estarei pronto para ir nessa missão em favor do nosso povo coreano”, salientou ainda D. Lazzaro citado pelo portal de notícias do Vaticano.
A Coreia do Norte é considerado como “o país mais isolado” do planeta e tem vindo a ser classificado sistematicamente no Relatório sobre a Liberdade Religiosa, da Fundação AIS, como tendo “um dos piores registos de direitos humanos” em todo o mundo.
O desejo do Papa Francisco
No mais recente desses Relatórios, lançado em Lisboa e em várias capitais europeias no passado dia 22 de Junho, recorda-se o empenho pessoal do Papa Francisco no diálogo entre Pyongyang e Seul, dado que os dois países estão tecnicamente em guerra pois apenas foi assinado um armistício após o conflito militar que decorreu entre os anos de 1950 e 1953.
“Em Agosto de 2022, o Papa Francisco manifestou interesse em visitar a Coreia do Norte, referindo que, se recebesse um convite, iria certamente. Em 2018, Kim disse ao então Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, que o Papa seria recebido com ‘entusiasmo’, no entanto, ultimamente as relações entre as duas Coreias têm-se tornado mais turbulentas. Por seu lado, o Papa Francisco exortou todos os coreanos a trabalharem pela paz”, pode ler-se no Relatório.
O documento da Fundação AIS recorda ainda que também a Comissão dos EUA para a Liberdade Religiosa Internacional (USCIRF) voltou a incluir a Coreia do Norte na lista dos países que suscitam especial preocupação, e que as sanções dos EUA foram reimpostas em Novembro de 2022. Face ao isolamento em que se encontra a Coreia do Norte e a repressão que as autoridades exercem sobre as populações, é muito difícil obterem-se dados concretos sobre a comunidade cristã.
Cristãos sob ameaça
O Relatório da Fundação AIS refere que, em 2022, segundo o grupo de defesa dos direitos humanos Portas Abertas, estimava-se em “cerca de 400 mil” os cristãos que vivem na Coreia do Norte. Todos eles estarão em grande ameaça pois, caso sejam descobertos “pelas autoridades, são deportados para campos de trabalho como criminosos políticos ou mesmo mortos no local, e as suas famílias partilharão também o seu destino”, refere ainda aquela organização.
Actualmente, as três dioceses católicas da Coreia do Norte estão vacantes, à espera de um dia poderem ser retomadas. “Até 2012, o Anuário Pontifício indicava como Bispo de Pyongyang D. Francis Hoong-ho, desaparecido desde 1949 após ser capturado pelo governo norte-coreano. Em 2013, a Santa Sé recebeu a confirmação de sua morte e seu nome foi incluído na lista de 81 mártires coreanos, cuja causa de beatificação está em andamento”, informa o portal de notícias do Vaticano.
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