Há 10 anos, no Verão de 2014, os Cristãos no Iraque enfrentavam o calor escaldante e condições precárias, enquanto fugiam do avanço do ISIS. Com cerca de 100.000 deslocados, a comunidade procurava abrigo e segurança, esperando apoio internacional urgente.
O calor em Erbil é avassalador, com os seus arredores semidesérticos e as temperaturas esmagadoras de 44°C do Verão iraquiano. À primeira vista, a cidade, capital do Curdistão, transmite um ar enganador de paz. Não há nada que sugira que nesta região do mundo, neste preciso momento, o destino de milhares e milhares de pessoas esteja em jogo. Não se ouve, não se vê, nem se pressente, mas as forças islamistas estão a apenas 40 km; e ainda há uma semana estavam às portas da cidade. Atrás dos muros das igrejas, nas escolas e nos centros desportivos, à sombra de edifícios semiacabados, esconde-se a realidade: milhares e milhares de refugiados, talvez até 70.000, espalhados por 22 pontos de acolhimento.
Um dos principais centros é a catedral católica caldeia, mais conhecida por Catedral de São José, em Ankawa, o bairro cristão da cidade. Estima-se que 670 famílias tenham procurado refúgio neste local e nos edifícios situados nas imediações. Uma lona improvisada, ou a sombra dos edifícios, são todo o alívio de que dispõem para se protegerem do calor esmagador e implacável. A maior parte deles está sentada no chão, em pequenos grupos familiares, em colchões ou tapetes de dormir. Outros estão sentados em cadeiras de plástico. Ankawa é uma vasta sala de espera. Há milhares de rostos, mas apenas uma história, um testemunho, um destino que os une a todos: são refugiados, condenados à morte por serem cristãos.
O êxodo de 100.000 cristãos
A 6 de Agosto 2014, os combatentes curdos Peshmerga que defendiam a zona cristã a norte de Mossul retiraram-se. A primeira bomba caiu na casa dos Alyias, em Qaraqosh, matando duas crianças, os primos David e Mirat, que brincavam no jardim, e ferindo gravemente uma terceira pessoa. O alarme espalhou-se rapidamente por toda a cidade: “O ISIS está às portas, os Peshmerga já não nos defendem; peguem nas vossas famílias e fujam!” Qaraqosh era uma cidade de cerca de 50.000 habitantes, um centro cristão durante séculos. Todos partiram com o que podiam carregar. Os únicos que ficaram para trás foram os que não podiam sair das suas casas, os doentes e os idosos. Aos habitantes de Qaraqosh juntaram-se os de outras cidades mais pequenas dos arredores, como Bartella e Karemlesh. Durante esses dias, estima-se que um total de 100.000 cristãos abandonaram as suas casas na região de Nínive, num êxodo de proporções apocalípticas, fugindo em direcção a Duhok, Zahko e Erbil.
É difícil imaginar o pânico que as pessoas devem ter sentido para partir sem olhar para trás. No entanto, isso é menos difícil para aqueles que viveram durante anos rodeados, sufocados e atacados por este fundamentalismo islâmico. Muitos deles ainda trazem nos ossos o trauma de 10 de Junho, quando, no espaço de algumas horas, as forças do ISIS tomaram Mossul sem que ninguém tentasse defendê-la. Ninguém – nem os seus políticos, nem o seu exército – mexeu um dedo.
Todas as famílias têm uma tragédia
Só na cidade de Mossul, calcula-se que mais de mil pessoas tenham sido assassinadas por causa da sua fé desde a derrota de Saddam Hussein. Cada família tem a sua própria tragédia, a sua própria história dramática; toda a gente tem familiares que foram assassinados, massacrados. “Este é o meu irmão Salman, tinha 43 anos; deram-lhe três tiros na cabeça, há cinco anos, em Mossul”, disse um dos deslocados. Ao lado do orador, a mãe tira lentamente a fotografia, segurando-a entre as duas mãos: há tanta dor neste gesto, naqueles olhos. Fugiram de Mossul e refugiaram-se numa aldeia perto do antigo mosteiro de Mar Mattai (São Mateus), onde tinham familiares. Pensavam que ali estavam seguros; renasceu a esperança no futuro; mas o avanço do Estado Islâmico obrigou-os a fugir de novo.
A poucos quilómetros dali, Yacoub, outro refugiado, mostra-nos a sua perna, aleijada e coberta de cicatrizes da bomba que explodiu em 2008 numa igreja de Mossul. Quando os jihadistas lançaram o ultimato aos Cristãos de Mossul, em Julho, Yacoub fugiu com as suas quatro filhas para Al Qosh. Daí partiu num segundo êxodo, há duas semanas, para o norte de Duhok. Perdeu a sua terra, a sua casa, tudo o que possuía; sofreu as consequências da destruição no seu próprio corpo. Mas não são as cicatrizes na perna que o preocupam; a grande tristeza de Yacoub é o futuro das suas quatro filhas.
O destino das crianças
“Não por nós, mas pelos nossos filhos”, é o apelo silencioso da mãe de uma das seis famílias ortodoxas siríacas, com 16 filhos ao todo, que se abrigaram sob o toldo de uma tenda na comunidade caldeia de Mangesh. Uma das meninas canta uma canção em inglês, rodeada por todas as outras crianças: “Todos me amam, todos me amam”. As crianças, que não percebem nada de guerras, nem de ódio, nem de massacres, que não sabem nada do que está a acontecer, não estão preocupadas com o futuro. É estranho ver tantas crianças juntas, mas não ver um único brinquedo, uma única boneca. Muitos dos bebés estão deitados directamente no chão, alguns estão em pequenos berços de transporte.
Sleiman carrega nos braços a sua filha de três anos. “O que é que ela fez para que a expulsassem da sua terra e a obrigassem a viver assim?”, diz-me. “Assim”, neste caso, significa viver com oito famílias num único quarto, com colchões, comida e água que lhes são dados pela Igreja, num calor infernal e em condições sub-humanas. Em Erbil, há tendas de campanha montadas para aqueles que não conseguem encontrar espaço nas salas de um centro desportivo, com cerca de oito pessoas em cada uma. Durante o dia, é como um inferno, dadas as temperaturas extremas, que chegam a atingir 48°C no interior da tenda. À noite, há o perigo de serem mordidos por ratos e escorpiões.
“Estamos a salvar as nossas vidas, a honra das nossas mulheres e filhas, e a nossa fé.” São estas as três principais razões da sua fuga precipitada. E foi esta acção rápida que os salvou de sofrerem o destino da comunidade yazidi, massacrada, violada e escravizada. No entanto, para os Cristãos de Nínive, Qaraqosh, Al Qosh, Telfek e tantos outros lugares, foi-lhes roubado algo mais do que as coisas puramente materiais, nomeadamente a esperança.
Uma terra encharcada de sangue
“Não posso continuar a viver aqui”, lamenta o pai de David, um dos rapazes mortos pela bomba do ISIS em Qaraqosh. “Este país está encharcado de sangue”. A mãe, uma jovem mulher completamente vestida de luto, enterra a cabeça nas mãos, chorando. Não têm documentos, nem passaportes. Não sabem como pedir um visto, mas repetem vezes sem conta que querem ir, não querem saber para onde, mas simplesmente sair desta terra de sofrimento. Aqui não há pessoal especializado para os ajudar a lidar com o seu trauma e tragédia; estão amontoados com todos os outros refugiados numa escola em Ankawa.
O seu irmão Adeeb trabalhava na barragem em Mossul. Num inglês mau mas claro, pergunta: “Porque é que os muçulmanos que vêm de fora têm os seus direitos reconhecidos nos países europeus, enquanto aqui nos tratam como cães – no nosso caso, nem sequer viemos de fora – este é o nosso país, não é?” Adeeb fala das raízes bíblicas de Nínive, da terra do Tigre e do Eufrates, da presença dos Cristãos em Mossul desde o séc. II, do mosteiro de São Mateus, da língua aramaica, a língua materna de Cristo, dos Católicos siríacos e caldeus, das comunidades cristãs ortodoxas e de todo um património religioso e cultural secular, agora ferido de morte.
A Igreja como âncora de ajuda e consolação
Mas este passado também está presente, real e activo. Os padres, as religiosas e os bispos estão todos a tentar ajudar da forma que podem. Estão por todo o lado, telefonando, organizando, pedindo, ouvindo, aconselhando, rezando. O que seria deles se a Igreja não estivesse aqui? Quem cuidaria deles? O mesmo se aplica a Duhok, onde outros cerca de 60.000 refugiados cristãos estão espalhados pelas aldeias e vilas a norte da cidade – alguns mesmo até à fronteira com a Turquia. O trabalho que está a ser feito pela Igreja é extraordinário.
O Padre Samir é um sacerdote católico caldeu de uma dessas aldeias a norte de Duhok. Ele conta o choque daquele primeiro dia em que, durante toda a noite e até de manhã, começou o êxodo de inúmeras pessoas que enchiam as ruas, dormiam nos carros e nos passeios. Só no centro catequético da paróquia, há actualmente 77 famílias ortodoxas siríacas, 321 pessoas no total, das quais 35 são crianças. O Padre Samir não regressa a casa antes da uma ou duas da manhã. Os dias de trabalho prosseguem desde então, sem uma pausa de um minuto. Às 10h da noite, recebe uma chamada no seu telemóvel a explicar que duas famílias yazidis estão na estrada e não têm nada. O Padre Samir sai à procura delas, leva-lhes colchões e arranja-lhes um lugar para ficarem em casa da sua irmã.
O Arcebispo caldeu de Mossul, Emil Nona, é um dos cinco bispos que também foram expulsos e deslocados, e que perderam as suas casas. Acompanhado por um sacerdote, leva cabazes de géneros alimentícios, visita as comunidades, assinala as suas necessidades: colchões, tendas, um frigorífico, medicamentos. Aconselha-os e encoraja-os. Este é um momento em que a Igreja que sofre se confronta com a Igreja heróica, que vive verdadeiramente o Evangelho. É uma Igreja que precisa do apoio, das orações e da solidariedade dos seus irmãos e irmãs cristãos de todo o mundo.
Em Erbil, Duhok e Zakho, por todo o Iraque, o rosto do sofrimento está estampado em tantos rostos e em tantas lágrimas, e resta pouca esperança: “Quando a esperança meramente humana se desvanece, só resta a esperança cristã”. E por todo o lado se ouve o grito unânime:
Ajudem-nos, não podemos continuar assim. Nós, os Cristãos do Iraque, somos vítimas de uma catástrofe, estendendo as mãos na esperança de que alguém nos salve da morte."
Esperam que a comunidade internacional responda e que não seja apenas a Igreja a vir em seu auxílio. Não se trata apenas de caridade cristã, mas sim de salvar o presente, o passado e o futuro de uma cultura e de uma religião antiga. Por isso, pedem ajuda imediata para saírem destes campos improvisados, destas tendas, sufocando ao sol. Mas também uma ajuda duradoura – protecção e segurança, o direito de viver a sua fé, que, para os Cristãos iraquianos, é a sua própria cultura e identidade e que desejam viver na sua própria terra – a terra que pertenceu aos seus pais e avós antes deles.
Maria Lozano | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt