UCRÂNIA: “Há um cansaço psicológico muito grande”, reconhece padre, em Kiev, quando se assinalam mil dias de guerra

A Rússia começou a invasão da Ucrânia a 24 de Fevereiro de 2022. Foi há exactamente mil dias. Desde então, o padre Lucas Perozzi permanece na região de Kiev. É de lá que este jovem sacerdote brasileiro, cuja missão é apoiada pela Fundação AIS, faz um retrato deste país que está aos poucos a cair na falta de esperança. “Passaram mil dias, continuamos em guerra…”, sintetiza, quase em lamento, este padre que hoje faz 39 anos e que ainda na semana passada teve de correr para casa quando a cidade foi alvo de um ataque de drones…

“A situação é a seguinte. Depois de mil dias, continuamos em guerra.” A voz continua igual, jovem. Mas percebe-se que há algum cansaço. Lucas Perozzi, padre brasileiro do Caminho Neocatecumenal, estava na capital ucraniana quando, na madrugada de 24 de Fevereiro de 2014, os primeiros soldados atravessaram a fronteira dando início à invasão do país. Foi há mil dias, data que se assinala hoje, 19 de Novembro. Desde então, já morreram milhares de pessoas, muitas cidades e vilas e aldeias foram atacadas e muitas acabaram mesmo por ser destruídas, levando à fuga de milhões de pessoas. 

Calcula-se que 80% da população foi já directamente afectada pela guerra. Mais de 6,3 milhões de ucranianos deixaram o país desde o início dos combates e mais de 5 milhões estão deslocados internamente. Das pessoas que permaneceram no país, vivendo em casa ou deslocadas noutras localidades, cerca de 40% dependem da ajuda humanitária para sobreviver, segundo dados das Nações Unidas.

É neste país que Lucas continua a viver. Depois de ter sido vigário da Igreja da Dormição da Virgem Maria, em Kiev, o padre brasileiro é hoje pároco na Paróquia do Espírito Santo, em Bayarka, uma pequena cidade-dormitório vizinha da capital ucraniana, a cerca de 30 quilómetros de distância. É de lá que Lucas Perozzi nos fala deste país em guerra onde se nota e muito o cansaço das pessoas.

“A verdade é que depois da primeira pressão, em que Kiev foi atacada diretamente, isso não voltou mais. Mas continuamos a ter ataques aéreos, com muita frequência ataques de drones”, descreve o jovem sacerdote numa mensagem de voz enviada para a Fundação AIS em Lisboa. Ao contrário dos primeiros dias, das primeiras semanas em que o som estridente das sirenes levava as pessoas a correr para os abrigos, hoje há menos medo, mas mais cansaço. “Vamos dormir debaixo das sirenes e acordamos debaixo das sirenes e de bombardeamentos. E as sirenes são contínuas, e isso leva as pessoas para um cansaço psicológico muito grande”, afirma o padre.

UM ATAQUE DE DRONES…

Apesar de muitos banalizarem o risco, a ameaça é constante. Ainda na semana passada o padre Lucas viveu talvez um dos momentos mais assustadores desde que começou a guerra há mil dias. “Na semana passada, por exemplo, estava fora, de noite, estava cansado e saí um pouco para relaxar antes de ir dormir e houve um ataque de drones. Ao mesmo tempo, a defesa antiaérea começou a destruir os drones e eu vi tudo isso a acontecer. De repente, senti que estavam a cair pedaços das bombas antiaéreas. Parecia uma chuva que estava a cair. De repente, comecei a escutar barulhos muito fortes de pedaços grandes de metal a estilhaçarem-se no chão. ‘Por amor de Deus’, pensei, ‘passei tanto tempo na guerra e agora vou morrer com uma besteira dessas?’ E saí dali, com a mão sobre a cabeça, correndo para casa. Mas não aconteceu nada, não. Foram só estilhaços.”

Foram só estilhaços e uma história para recordar. Uma história que ilustra, no entanto, como o dia-a-dia dos ucranianos se transformou com a guerra. Tudo é um problema. É o problema do alistamento militar que leva muitos homens a não sair de casa, é o problema económico de um país em crise e em que tudo está muito mais caro, é o problema do cansaço psicológico que está a arrastar as pessoas para a desesperança. 

No começo da guerra, diz o padre Lucas, os homens mostravam “coragem e tinham vontade de defender” o país. Agora, isso parece estar a mudar. “Agora, os que ficaram têm muito medo. Muitos deles não saem de casa, muitos estão escondidos.” Por causa disso, descreve o sacerdote, há famílias em que a mulher sai para trabalhar e o marido fica em casa. E isso é também um problema. “O homem vive isso como uma humilhação. A mulher não vê isso assim, mas para o homem é uma tragédia. Eu vejo isso na minha própria paróquia”, explica.

As pessoas estão todas cansadas psicologicamente, com muito medo e falta de esperança. E também há o problema da crise económica. Está tudo muito caro, cada vez mais caro. Então, a situação está difícil.

A MÃO AMIGA DA FUNDAÇÃO AIS

Como é que se sobrevive num país há tanto tempo em guerra? Vão-se ganhando rotinas. Já não há tanto medo das bombas, já se desvaloriza o som estridente das sirenes, até já se despreza, de certa forma, a própria vida. São marcas de mil dias sem paz. “É impossível viver uma vida assim. No primeiro meio ano, corríamos para os bunkers, agora não. Quando chegar a hora chegou. Deus sabe a hora. Pode ser um míssil ou uma paragem cardíaca… Deus é que é o dono da vida. A realidade é essa. Aceitamos assim, do jeito que é.”

E quanto ao trabalho enquanto sacerdote, como é a vida numa paróquia marcada pelo ritmo das bombas que podem cair do céu a qualquer instante? “A nossa missão é anunciar a Palavra, mas também não é nada fácil. Há uma falta de esperança nas pessoas, uma falta do divino, do sagrado. Já nada consola. Já não buscam nada. Muitas pessoas estão numa apatia muito grande. É uma desilusão por tudo. E assim vamos vivendo”, descreve o sacerdote. No meio de tudo isto, sobra como único aspecto positivo: a ajuda que a Fundação AIS tem continuado a enviar para a Ucrânia, e que se tem revelado essencial para a vida da Igreja e de muitas comunidades. “Em relação à Fundação AIS, estamos a receber muita, muita ajuda”, sintetiza o padre Lucas. Desde o apoio para o aquecimento de salas destinadas ao acolhimento de pessoas que em suas casas não têm como se aquecer, à ajuda para a mobilidade dos sacerdotes e religiosas – “o meu carro foi dado pela Fundação AIS”, confessa o padre Lucas –, ao apoio para a formação de agentes da Igreja para a questão do trauma, até à simples organização de acampamentos para jovens, há um quase sem-número de exemplos que são descritos do que tem representado a solidariedade dos benfeitores da AIS nestes mil anos de guerra.

O padre Lucas sublinha, por exemplo, a questão dos acampamentos. “Todas as paróquias receberam uma ajuda para fazer acampamentos com jovens e crianças, e isso é muito importante porque elas vivem continuamente uma situação alarmante. É um stress contínuo. E as crianças começam a brigar umas com as outras. Por isso, é importante tirá-las desse ambiente. Eu faço isso na minha paróquia. Fazemos acampamentos nas montanhas, onde não há alarmes, onde não chegam os mísseis, porque não tem (por lá) muita civilização e assim eles podem descansar, poderem brincar, conversar com outras crianças e nós podemos dar apoio espiritual com eucaristias, catequeses…”

Se este apoio espiritual é muito importante com as crianças, não o é menos com os adultos. E também aí se nota a mão amiga da Fundação AIS. A formação dos membros da Igreja na questão dos traumas é fundamental. “Temos de nos qualificar para sabermos trabalhar com as pessoas que estiveram na frente da guerra, com pais que perderam os filhos, com filhos que perderam os pais… tudo relacionado com os traumas, e isso não é fácil. É um problema novo para nós”, conclui.

E quanto ao futuro, como vai ser? “Nós fazemos tudo como agradecimento. Estou contente com a missão que tenho e  bola para a frente. Enquanto estivermos vivos, temos a missão de anunciar o Evangelho!”

Foi há mil dias que começou a guerra. Uma data que se assinala hoje, dia 19 de Novembro. Uma data que o padre Lucas Perozzi por certo nunca mais vai esquecer. É que hoje é também o dia do seu aniversário…

Paulo Aido | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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