O Padre Lucas Perozzi vive na Ucrânia desde há 22 anos. Agora está em Bila Tserkva, a cerca de uma centena de quilómetros da capital, Kiev. Tem à sua responsabilidade três paróquias. É uma zona pobre, onde há constantes falhas de electricidade. Muitas vezes, a Missa é celebrada à luz das velas. E também há dias em que não há nada para comer. Em vésperas do Natal, o sacerdote, que é apoiado pela Fundação AIS, diz que apenas espera “que Deus se faça presente” e que a guerra acabe… Por ali, os ataques continuam e todos os dias há o enterro de algum soldado, de algum militar…
Lucas Perozzi está em Bila Tserkva, uma pequena cidade com pouco mais de 280 mil habitantes. Neste momento tem três paróquias ao seu cuidado. É uma nova experiência na vida deste jovem sacerdote brasileiro de 39 anos de idade, depois de ter sido vigário da Igreja da Dormição da Virgem Maria, na capital ucraniana, e de ter estado na cidade-dormitório de Bayarka. Agora vive mais longe de Kiev, a cerca de 100 quilómetros de distância. Mas apesar disso, a guerra continua presente, como uma assombração que não desaparece.
Em Bila Tserkva, cujo nome, numa tradução simples, significa Igreja Branca, há menos bombardeamentos do que em Kiev, mas os ataques causam mais danos pois as defesas antiaéreas são em menor número. E sempre que se escutam as sirenes de alarme, avisando a iminência de algum ataque, isso tem de ser levado mesmo a sério. “Lembro-me do primeiro dia que dormi aqui depois da mudança”, recorda o Padre Lucas à Fundação AIS. “Nesse dia, houve um ataque bem forte, e essa foi a diferença que eu senti em relação a Kiev. O som [dos mísseis] e todos caíram no alvo, enquanto em Kiev são interceptados no ar.”
Logo nessa primeira noite em Bila Tserkva houve mortos e feridos. “Um edifício caiu, um edifício de quatro andares, duas pessoas morreram, oito ficaram feridas e houve várias casas que ficaram arruinadas, não só o prédio onde caiu o míssil, mas também outros seis edifícios em redor…”, diz o sacerdote, acrescentando quase em tom de resignação: “a vida é assim”.
“Todos os dias nos deparamos com a morte”
A vida ali em Bila Terskva é dura. A região é pobre e os ataques russos têm sido impiedosos sobretudo para as infraestruturas energéticas. E agora, com o Inverno a ganhar força, com as temperaturas a descerem drasticamente, isso torna-se ainda mais angustiante. “Agora estamos a ter apagões todos os dias. Neste momento, em que estou a mandar esta mensagem, falta meia hora para começar a Missa e ainda estamos sem luz. Às vezes, celebramos a missa à luz das velas, às vezes, é com a lâmpada da bateria, enquanto a bateria está carregada…”, desabafa. “Aqui a luz é desligada às quatro horas da manhã. Depois vem às quatro, cinco horas da tarde, mas há lugares em que é pior. Um amigo meu está noutra cidade e por lá sofre bastante, pois tem apenas cerca de duas horas de electricidade por dia. E isso é das coisas mais difíceis, porque sem electricidade não se tem nada, não se faz nada”, afirma.
A voz do sacerdote brasileiro traduz o estado de alma de quem já se conformou de alguma forma com as coisas. Há demasiados dias de guerra. Ao fim de quase quatro anos de conflito, de constantes bombardeamentos, de violência, de mortos e feridos, de pessoas com vidas improvisadas, parece que tudo se banalizou. Mas não. A morte não se banalizou.
“Todos os dias há notícias de soldados que morrem na guerra e todos os dias se vê algum enterro, porque o enterro de um soldado é feito numa carreta, que leva o corpo. E todo o mundo pára, sai dos carros e fica em pé em respeito a esse soldado que morreu, soldado, sargento, seja quem for. Todos os dias nós nos deparamos com a morte e isto sem falar nos ataques…”
Padre Lucas Perozzi
Pagar para “utilizar a igreja que nos roubaram”
As paróquias onde agora o Padre Lucas se encontra em missão fazem parte de uma Ucrânia mais rural, mais afastada da grande urbe, onde a vida das pessoas se faz também com mais dificuldade. A paróquia onde está, em Bila Tserkva, é exemplo disso.
Neste momento, a comunidade católica não possui nenhuma igreja. A que existe foi confiscada depois da II Guerra Mundial pelo governo comunista da União Soviética e transformada numa sala de música. O regime colapsou, mas o templo nunca chegou a ser devolvido. “Então, nós pagamos para celebrar a missa na Igreja”, conta o padre. “E todos os anos temos de fazer um acordo com o Ministério da Cultura para poder utilizar a igreja que nos roubaram”, diz ainda. Há também uma capelinha, “que era uma garagem”, que também é utilizada para a celebração da Missa e ainda para aulas de catequese e encontros de grupos paroquiais.
Noutra das comunidades a que o Padre Lucas dá apoio, o sacerdote que o antecedeu comprou, “com o apoio da Fundação AIS”, um terreno com uma casa que estava já em construção. O projecto está ainda um pouco atrasado. “A casa tem de ser terminada ainda, não tem absolutamente nada, mas vai ser um centro religioso. Vai ter uma capela e salas para encontros de jovens e de crianças e temos um plano para fazer aí também um centro de reabilitação para os veteranos de guerra”, explica.
Mas está tudo ainda um pouco incipiente. O chão é ainda em terra batida e o edifício não tem água. Apesar de haver electricidade, o frio é um problema. Há pelo menos duas janelas que precisam de ser trocadas, e uma delas é, neste momento apenas “um buraco aberto”. Por ali, o frio é glaciar no Inverno e no Verão o calor torna-se insuportável… Para as obras é preciso dinheiro, mas a comunidade é muito pobre. O Padre Lucas Perozzi tem procurado apoio para ir fazendo algumas coisas, como a canalização da água e a cobertura do chão com cimento, “para celebrar mais dignamente”.
O sacerdote brasileiro tem ainda uma terceira paroquia, numa zona já mesmo rural. Aí tem uma igreja grande, mas também sem água canalizada e sem aquecimento.
Um milagre perceber como as pessoas sobrevivem
A vida é assim, feita de sobressaltos, com as populações em alerta constante, temendo as bombas que caem do céu, o dia-a-dia feito de pobreza, temendo até o próprio futuro que se afigura como uma enorme incógnita. A vida num país em guerra é feita de pequenos nadas. “Nós temos electricidade e não temos electricidade, nós temos água e depois vem um tempo em que falta a água, às vezes temos o que comer e depois, às vezes, passamos fome… tem de tudo, tem de tudo”, observa o sacerdote.
Não é fácil a vida num país em guerra, em que a sobrevivência no dia-a-dia é um desafio cada vez mais difícil. “O preço das coisas está a ficar cada vez mais caro e as pessoas não sabem o que fazer. É um milagre como as pessoas vivem, os refugiados que vieram de leste e que moram aqui… É impressionante… não sei como sobrevivem, sobretudo os mais velhos”, desabafa. “Esta é a realidade. Os preços a subir cada vez mais e mais e mais e o dinheiro que as pessoas recebem a ser insuficiente para as manter…”
Neste contexto, a celebração do Natal que se avizinha tem uma nostalgia especial. “Nós esperamos que Deus apareça nestas festas, que Deus se faça presente, é isso que eu desejo, mesmo se não acabar a guerra… Porque mesmo acabando a guerra, o problema vai continuar e vai ser muito grande, é o problema económico e a anarquia que acontecem depois das guerras, mas o que eu desejo é que Deus apareça na vida de cada pessoa a quem eu fui enviado… Todos os dias rezo por eles, rezo pelos meus paroquianos, para que Deus nasça para cada um, porque a nossa vida aqui é temporária, é muito frágil. Aqui tudo acaba, tudo passa.”
Nova missão: confessar soldados estrangeiros
A mensagem enviada para a Fundação AIS em Lisboa pelo Padre Lucas Perozzi termina com um pedido de oração: “rezem por mim”. É um pedido de oração também porque o bispo lhe pediu agora mais uma missão. A de confessar, uma vez por mês, soldados estrangeiros que estão integrados nas fileiras do exército ucraniano e que se encontram numa outra diocese, numa zona situada mais perto da linha da frente dos combates. “Vou confessar e dar os sacramentos e conversar com os soldados estrangeiros, sobretudo aqueles que falam espanhol e português”, explica à AIS. É a repetição do que já fez em Kiev, experiência de que não se consegue esquecer. “É impressionante, impressionante”, diz.
O sacerdote brasileiro assegura que esses soldados que conheceu no confessionário “encontraram Cristo e ficaram muito contentes e tiveram uma vida antes e uma vida depois do nosso encontro, tiveram uma vida nova”.
“Muitos deles voltaram para a guerra, alguns mantêm contacto comigo, outros voltaram para casa, mas isto é uma missão muito importante”, sublinha. “Tenho de me apoiar em Cristo e pedir que ele me mantenha, que me ajude”, diz. “Por isso, também peço a todos ajuda. Rezem por nós, coloquem-nos sempre nas vossas orações”, diz ainda, concluindo: “estou disposto a fazer o que for preciso por Cristo, por aquelas pessoas a quem ele me mandou”.
Paulo Aido | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt







