UCRÂNIA: “A situação na linha da frente é pior do que o purgatório”, diz Núncio Apostólico à Fundação AIS

Assinalou-se no sábado, dia 24, o segundo aniversário da invasão da Ucrânia. Numa conferência organizada pela Fundação AIS Internacional, o Núncio Apostólico neste país, Arcebispo Visvaldas Kulbokas, traçou um retrato terrível do sofrimento deste povo. “Estamos a perder centenas de vidas todos os dias”, disse, alertando para a situação extremamente difícil das populações, especialmente as que se encontram nas regiões onde a guerra mais se faz sentir. Um alerta secundado também pelo líder da Igreja Greco-Católica na Ucrânia, D. Sviatoslav Shevchuk.

“A Ucrânia está a viver a sua própria Via Sacra.” A frase, de Regina Lynch, presidente executiva internacional da Fundação AIS, sintetizou o que foi dito na conferência, dia 14 de Fevereiro, que juntou, on-line, dois dos principais rostos da Igreja deste país invadido pelas tropas russas faz hoje precisamente 732 dias: o Arcebispo Sviatoslav Shevchuk, e o Núncio Apostólico, D. Visvaldas Kulbokas. Ambos fizeram o retrato de um país que precisa urgentemente de ser auxiliado para superar o drama da violência da guerra.

A conferência, organizada pela AIS Internacional, veio sublinhar também a importância de mais uma Campanha global que a fundação pontifícia está a promover em favor da Igreja e do sofrido povo ucraniano e que, nesta Quaresma, irá mobilizar todos os 23 secretariados da instituição, Portugal incluído.

Desde que começou a invasão, a 24 de Fevereiro de 2022, já perderam a vida milhares de soldados e, segundo algumas estimativas, mais de 10 mil civis. Calcula-se ainda que cerca de 10 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar as suas casas, as aldeias, vilas e cidades onde viviam. São deslocados da guerra dentro de fronteiras, ou pessoas que vivem agora como refugiados noutros países.

Mas há também muitas outras vítimas. Os que ficaram mutilados – segundo dados da ONU, há mais de 20 mil civis feridos –, os traumatizados, as crianças que foram raptadas e estão na Rússia, os desaparecidos em combate. Situações trágicas que enlutam o quotidiano de todo um povo. Há mulheres jovens que não sabem, por exemplo, o que aconteceu aos seus maridos, mobilizados para a frente de guerra. Elas desconhecem se eles estão vivos ou se caíram em combate. Não sabem se são viúvas ou não.

“UM PAÍS A VIVER A VIA SACRA”

A Ucrânia está hoje, de facto, numa verdadeira encruzilhada, pois é um país que continua a lutar nas trincheiras pela sua liberdade, mas, por outro lado, trava também uma batalha essencial pela sobrevivência das famílias. E é aqui, junto das pessoas, principalmente das que estão em maior necessidade, que entra Igreja.

Neste país, “que está a viver a sua própria Via Sacra”, como lembrou Regina Lynch, torna-se imperioso auxiliar os sacerdotes e as religiosas que, todos os dias, são sinal da solidariedade inesgotável da Igreja. E é isso que, desde o primeiro momento, desde o primeiro dia da invasão, a Fundação AIS tem estado a fazer.

Sinal da renovação deste compromisso, este ano, a fundação pontifícia promove a nível global nesta Quaresma uma nova campanha em favor da Ucrânia. O país está em guerra, já se sabe, mas há um combate imenso que se trava fora dos holofotes mediáticos, que não inclui bombardeamentos nem avanços e recuos de soldados. É o combate pela defesa das pessoas, das vítimas directas da violência.

O futuro da Ucrânia e da Igreja depende da forma como formos capazes de responder a esta necessidade de superar o trauma da guerra. Este trauma já afectou o coração da sociedade ucraniana: a família.”

D. Sviatoslav Shevchuk explicou por que fala em trauma. “Hoje, temos de lidar com novos grupos de famílias, as famílias dos que foram mortos, as famílias dos que ficaram gravemente feridos, mas também as famílias dos que estão desaparecidos”, afirmou. E avançou com alguns números.

“Segundo a Ucrânia, cerca de 20 mil crianças foram raptadas”, lembrou, acrescentando que também há cerca de “35 mil pessoas desaparecidas em combate”. Tudo isto permite-lhe afirmar que “a vida destas famílias é uma tortura constante”. Há inúmeras histórias que atestam esta realidade que afecta milhares de famílias.

O arcebispo contou o caso de uma mulher de 23 anos, mãe de dois filhos. “Ela perguntou-me um dia: ‘Sou viúva? Devo rezar pelo meu marido como alguém que está vivo ou morto?’ De cada vez que temos trocas de prisioneiros e os seus maridos não regressam, o seu luto é renovado, pelo que é uma tortura física e psicológica constante para cada família”, contou o prelado na conferência organizada pela Fundação AIS Internacional.

UMA ATENÇÃO ESPECIAL PARA AS FAMÍLIAS

Neste momento, na Ucrânia, praticamente todas as pessoas precisam de algum tipo de ajuda. A Igreja tem uma atenção muito especial, por exemplo, sobre os que estiveram em cativeiro e foram, entretanto, libertados. O Núncio Apostólico referiu esta questão.

Quando falamos com as pessoas que regressam à Ucrânia, elas descrevem as condições horríveis em que foram mantidas, especialmente os militares. Alguns não conseguem sequer falar, de tão traumatizados que estão.”

Todos eles precisam de sere apoiados, mas também as suas famílias que têm de aprender a lidar com quem viveu experiências muito duras. Por tudo isto, pode afirmar-se que a família é uma das principais vítimas desta guerra no coração da Europa. Segundo estes dois responsáveis da Igreja, o Arcebispo-mor da Igreja Greco-Católica Ucraniana e o Núncio Apostólico, ou seja, o embaixador do Vaticano, é fundamental encarar este problema. “Actualmente, a maioria das famílias vive separada, porque os homens estão no exército e as mulheres que têm filhos deixaram as suas cidades, ou mesmo o país”, explicou D. Sviatoslav.

As estatísticas que traduzem esta situação são também assustadoras. “Em 2023, tivemos 170 mil novas famílias, mas houve 120 mil divórcios. Estes são os números mais elevados de divórcios na história da Ucrânia independente. Ajudar estas pessoas é um grande desafio para a nossa Igreja. Muitas vezes, não se pode fazer nada, a não ser estar presente, chorar com eles, segurar a mão dessa mulher ou desse soldado que está a sofrer… Este é o maior desafio pastoral para mim e para a Igreja de hoje”, acrescentou o Arcebispo, líder da maior Igreja de rito oriental em comunhão com Roma.

UMA IGREJA NA CLANDESTINIDADE

As necessidades são constantes num país em guerra como a Ucrânia. Para a Igreja é fundamental estar presente onde o povo mais sofre, mais precisa de ajuda. “Para as pessoas no estrangeiro é difícil imaginar o que se está a passar aqui”, alertou o Núncio Apostólico.

“A situação na linha da frente é pior do que o purgatório, há muitas pessoas a quem não temos qualquer possibilidade de chegar, nem sequer de dar comida ou água”, acrescentou D. Visvaldas Kulbokas. E há também desafios concretos que se colocam à Igreja, nomeadamente o de estar presente nos territórios ocupados pelas tropas russas. 

O Arcebispo Shevchuk diz que, nesses lugares, a Igreja Greco-Católica Ucraniana [IGCU] foi obrigada a passar à clandestinidade.

Não há mais padres católicos nessa parte da Ucrânia. Recebemos informações de que, em Donetsk, o nosso povo ia à igreja rezar todos os domingos, mesmo sem o padre, mas a igreja foi confiscada e as portas estão fechadas. Nas zonas ocupadas da região de Zaporizhzhia, as autoridades russas emitiram um decreto especial que proíbe a existência da IGCU e confiscaram as nossas propriedades, pelo que as pessoas rezam em casa e, se puderem, seguem os nossos serviços litúrgicos online.”

Isto implica um risco enorme para todos os sacerdotes que estão nestas zonas. Alguns, acabam mesmo detidos. Foi o caso dos padres Ivan Levitskyi e Bohdan Heleta, presos em Novembro de 2022. “Estão vivos ou estão mortos? Desde a sua detenção, não temos qualquer informação”, disse o Arcebispo.

Neste cenário tão duro, o papel da Igreja, dos sacerdotes, das religiosas agiganta-se na mesma proporção das dificuldades das populações. Algumas das tarefas prioritárias da Igreja passam pelo apoio psicológico aos traumatizados da guerra, mas também à assistência urgente, diária, aos cerca de sete milhões de ucranianos que estão a sofrer já de escassez de alimentos, especialmente os que se encontram mais próximos da linha da frente.

Até agora, a ajuda internacional tem permitido fazer verdadeiros milagres. Mas ninguém pode dizer como vai ser daqui a algum tempo. “Durante o ano passado, conseguimos resistir à maior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial”, diz D. Sviatoslav Shevtchuk. Mas agora, diz, tudo pode estar a mudar. “A primeira euforia da assistência humanitária à Ucrânia está a diminuir, pelo que temos de desenvolver a nossa própria logística para ajudar os necessitados”, afirma, de forma realista, o arcebispo.

A AJUDA DA FUNDAÇÃO AIS

Esta constatação de D. Sviatoslav, vem dar relevo ao trabalho desempenhado pela Fundação AIS nestes dois anos de guerra, assinalados no sábado, 24 de Fevereiro. Desde esse dia, a AIS tem procurado assegurar um apoio de rectaguarda que se tem mostrado essencial para que a Igreja possa continuar a desempenhar o seu papel insubstituível junto das populações da Ucrânia.

Nos últimos dois anos, a Ucrânia foi mesmo o país que mais beneficiou da ajuda da Fundação AIS a nível internacional. Foram apoiados  mais de 600 projectos, incluindo o financiamento da construção de 11 centros de auxílio psicológico e espiritual, bem como o pagamento de campos de férias para as crianças mais afectadas pelos combates, a compra de veículos para que padres e religiosas possam exercer o seu ministério pastoral, e até o fornecimento de sistemas de aquecimento e fornos para que instituições geridas pela Igreja possam ajudar os ucranianos a suportar os Invernos rigorosos em que as temperaturas chegam a ultrapassar os vinte graus negativos.

Toda esta ajuda é para continuar. Esse compromisso foi assegurado por Regina Lynch, a presidente executiva internacional da Fundação AIS. Logo no início da conferência, a responsável disse que, “com tantos conflitos e agitação em todo o mundo, corremos o risco real de a Ucrânia ser esquecida, à medida que a atenção mundial se desloca para a próxima crise.” Mas, assegurou, isso não vai acontecer.

“Na AIS, estamos determinados a que isso não aconteça, e esta é uma das razões pelas quais estamos a promover a Campanha da Quaresma deste ano para chamar a atenção para a situação na Ucrânia”, acrescentou Regina Lynch. Uma Campanha que vai mobilizar todos os 23 secretariados da instituição em todo o mundo, incluindo, claro, Portugal.

Paulo Aido | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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O maior desafio à liberdade religiosa na Ucrânia é a situação nos territórios ocupados. Na área controlada pelas autoridades de Kiev, os casos de discriminação religiosa são, até à data, sobretudo incidentes perpetrados contra indivíduos, e não violações sistémicas da liberdade religiosa.
Tragicamente, a guerra parece ter-se enraizado cada vez mais. As violações dos direitos humanos, incluindo as violações da liberdade religiosa, não diminuirão. As perspectivas continuam a ser negativas.

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