MOÇAMBIQUE: Padre denuncia rapto de “centenas” de rapazes para as milícias dos jihadistas e de raparigas para “suas esposas”

MOÇAMBIQUE: Padre denuncia rapto de “centenas” de rapazes para as milícias dos jihadistas e de raparigas para “suas esposas”

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MOÇAMBIQUE: Padre denuncia rapto de “centenas” de rapazes para as milícias dos jihadistas e de raparigas para “suas esposas”

Segunda-feira · 7 Junho, 2021

“São feridas difíceis de curar.” Para o Padre Kwiriwi Fonseca, da Diocese de Pemba, além dos mais de 2500 mortos e mais de 750 mil deslocados causados pelos ataques terroristas em Cabo Delgado desde Outubro de 2017, há ainda a contabilizar um número elevado de pessoas raptadas, essencialmente rapazes e raparigas.

Não há estatísticas oficiais sobre isso, mas o Padre Fonseca não tem dúvidas em afirmar que serão centenas de jovens. “Podemos falar em centenas porque se nós contarmos com todas as aldeias onde teve raptos, podemos [apontar] para esse número sim.“

Centenas de jovens que terão sido levados com objectivos muito concretos, segundo este sacerdote. “Os terroristas estão a usar meninos para treiná-los, enquanto as meninas são feitas de esposas, estupradas, tudo isso. Algumas das mulheres, quando [os terroristas] percebem que [já] não lhes interessa, são mandadas embora.”

Responsável pela comunicação na Diocese de Pemba, o Padre Fonseca tem contactado com dezenas de deslocados vítimas da violência terrorista e está em permanente ligação com outros sacerdotes e religiosas na província de Cabo Delgado.

MOÇAMBIQUE: Padre denuncia rapto de “centenas” de rapazes para as milícias dos jihadistas e de raparigas para “suas esposas”
“São feridas difíceis de curar.”

Esse conhecimento de quem está no terreno permite-lhe dizer que o rapto de jovens é um dos dramas principais da guerra em Cabo Delgado. Uma das pessoas que o alertou para essa realidade foi a Irmã Eliane da Costa. Brasileira, estava em Mocímboa da Praia em Agosto do ano passado quando a vila costeira caiu nas mãos dos terroristas. Dezenas de pessoas foram então sequestradas. Entre elas, duas religiosas, Eliane e a Irmã Inês Ramos, ambas da congregação de São José de Chambéry.

“A Irmã Eliane viveu 24 dias no meio dos terroristas, no mato, e alertou-me dizendo: ‘Padre Fonseca, não se esqueça das pessoas raptadas, principalmente as crianças e adolescentes, que são treinadas também para serem terroristas’”, lembra o Padre Kwiriwi Fonseca, numa entrevista via zoom com a Fundação AIS.

Denunciar a situação das pessoas raptadas pelos terroristas em Cabo Delgado, assim como procurar apoiar os deslocados faz parte da missão deste sacerdote católico. Contactar com os que foram forçados a fugir, escutar as suas memórias dolorosas, procurar ajudá-los a descobrir caminhos de futuro no meio da tempestade em que se encontra a região norte de Moçambique não é tarefa fácil.

Mucojo é um posto administrativo costeiro no distrito Macomia. Esta localidade já foi palco de ataques. Mina é hoje uma mulher derrotada pelas suas próprias memórias. Cada vez que recorda o que lhe aconteceu, o que aconteceu aos seus familiares, marido, filhos, irmão, é como se abrisse de novo uma ferida que teima em não cicatrizar.

O Padre Fonseca esteve com ela e escutou o seu lamento. “Apareceram lá cinco homens de surpresa [e as populações] perceberam que eram eles, eram os Al-Shabaab, os terroristas. E os terroristas encontraram lá o marido dessa senhora, o seu irmão, quatro filhos… Aí disseram o seguinte: nós vamos levar os dois meninos, na verdade levaram os três meninos, um de 14, outro de 12 e outro de 10 anos. E foram. O marido e o irmão já tinham sido amarrados. E insistiram para que a mulher se fosse embora pois iriam matar o marido e o irmão. Ela resistiu e não saiu do local. Então ela viu sendo degolados o seu marido e o seu irmão. Naquele momento uma criança, uma menor, dos seus dois ou três anos, viu [também] toda essa cena e essa criança neste momento [continua] assustada e insiste para que voltem [à aldeia] para ver o pai. Ela viu tudo isso.”

Hoje é possível encontrar muitos dos deslocados de Cabo Delgado em outras províncias como Niassa, Nampula, Zambézia e mesmo Maputo. Em Lichinga, na província de Niassa, vamos encontrar a Irmã Mónica da Rocha, uma religiosa portuguesa que pertence à Congregação das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima.

Por ali já chegaram mais de mil deslocados. E continuam a chegar quase todos os dias, sinal de que a guerra prossegue, o medo está instalado e as populações sentem-se ameaçadas. São pessoas que chegam sem nada. A irmã diz à Fundação AIS que é “urgente reconstruir vidas destruídas”.

Também em Lichinga chegam relatos de raptos, de pessoas levadas à força pelos terroristas. A irmã diz que “os raptos, a separação de famílias e as violações”, sendo uma consequência dos ataques terroristas, “já existiam antes do conflito de Cabo Delgado um pouco por todo o país, infelizmente…”

Já existiam mas agora agravaram-se e ganharam outra amplitude. “Os raptos em contexto de guerra são mais comuns em jovens e crianças. No caso dos meninos raptados são na maioria das vezes levados para serem treinados para lutar [ao lado dos terroristas] e no caso das meninas para serem [suas] escravas sexuais. Já no caso das violações abrangem todas as idades. Num dos relatos que ouvi um grupo de insurgentes fez cerco a um grupo de mulheres que estavam a trabalhar na machamba e violou todas incluindo grávidas e senhoras de idade…”

O futuro destes jovens é preocupante. O Padre Fonseca não tem dúvidas em dizer que os rapazes estão a ser sujeitos a processos de radicalização para serem incorporados nas fileiras terroristas. “Eu acho que a radicalização é o caminho. Estamos a falar de gente que saiu [das suas casas] no ano passado, no ano anterior… é muito tempo em contacto com o mal e aí acaba assimilando o mal. E também, e eu insisto nisso também, na incapacidade de distinção de ‘isto é o mal, isto é o bem’, pelas próprias crianças, pode levar a serem mais radicais. Pelo período de que têm contacto, interação [elas] podem vir a ser piores terroristas…”

Esta situação levanta inúmeras questões, até do ponto de vista militar. Estas crianças e jovens foram retiradas à força das suas famílias, das suas aldeias, do ambiente onde sempre viveram. Agora, sempre que as Forças de Segurança de Moçambique decidirem lançar operações de combate aos grupos terroristas, será que terão em consideração a existência destes jovens sequestrados? “Se intensificarem esta guerra, e vários parceiros internacionais, vários governos, vários países pretendem ajudar [Moçambique] a eliminar [os terroristas], que quer dizer isso?”, pergunta o Padre Kwiriwi Fonseca. “Quer dizer que também muitos inocentes irão morrer…”

O rapto de jovens pelos terroristas nestes três anos e oito meses de guerra em Cabo Delgado, teve um episódio dramático que foi denunciado pela Igreja Católica. No dia 8 de Abril do ano passado, 52 jovens, na sua maioria cristãos, foram executados por se terem recusado a integrar as fileiras jihadistas. O crime ocorreu na aldeia de Xitaxi, distrito de Muidumbe. D. Luiz Fernando Lisboa, então Bispo de Pemba, disse à Fundação AIS que a notícia da morte destes jovens o encheu de “imensa tristeza” e falou deles como “verdadeiros mártires da paz, porque não aceitaram participar na violência, na guerra, e por isso foram assassinados”.

PA | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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