MOÇAMBIQUE: Os terroristas têm “um sistema de franchising” com o Estado Islâmico, diz prof. Eric Morier-Genoud

É um dos mais conceituados especialistas na questão do terrorismo em Moçambique. Eric Morier-Genoud, professor catedrático na Universidade de Queens, em Belfast, esteve recentemente em Portugal e em entrevista à Fundação AIS falou sobre a situação em Cabo Delgado, a actuação dos grupos armados, a sua ligação em “sistema de franchising” aos jihadistas do Estado Islâmico, e a ameaça que representam para a comunidade cristã.

Ao fim de quase oito anos de violência terrorista, são mais as dúvidas do que as certezas. “Ainda não sabemos quem são, não sabemos o que querem, como diz o Governo, mas talvez seja a altura de tentar saber isso”, diz o investigador.

Em 5 de Outubro de 2017 começou a insurgência terrorista em Cabo Delgado com um ataque a Mocímboa da Praia. Desde então, e já passaram quase oito anos, o balanço é trágico: mais de cinco mil mortos e mais de 1 milhão de deslocados num território profundamente pobre.

Professor catedrático de História da África na Queen’s University Belfast, na Irlanda do Norte, Eric Morier-Genaud é considerado um dos maiores especialistas na insurreição jihadista no norte de Moçambique. Recentemente, esteve em Portugal para o lançamento de um livro que aborda esse tema – “Jihad Inevitável? – Muçulmanos e Política em Moçambique depois da Independência” – e falou com a Fundação AIS. Na entrevista, sublinha o facto de se saber relativamente pouco sobre quem são efectivamente os terroristas e o que pretendem. É preciso recuar um pouco no tempo para se entender as origens da organização.

“O grupo emergiu nos anos 2010, na província [de Cabo Delgado], ganhou presença também um pouco em Niassa e Nampula através de mesquitas e que passou para a violência em 2017. Em 2018 fizeram uma ligação ao Estado Islâmico, a quem fizeram uma prestação de obediência. Mas isso não significa que fazem tudo o que o Estado Islâmico costuma fazer. Aí há um certo mal-entendido. Os académicos falam muito num sistema de ‘franchising’. Ou seja, o grupo usa o nome do Estado Islâmico e o Estado Islâmico oferece publicidade, oferece alguns treinos, exige alguns princípios, mas não há uma hierarquia, é um sistema bastante flexível.”

A comunicação do grupo passa pelo Estado Islâmico

Para o professor, apesar de todas as vicissitudes ocorridas ao longo destes quase oito anos de luta armada, na essência o grupo continua basicamente a ser o mesmo que emergiu nos anos de 2010. “Os dirigentes continuam os mesmos, houve alguns que foram mortos pela tropa moçambicana, mas a chave da liderança continua a mesma e são, na sua maioria, moçambicanos”, explica. “Há uns tanzanianos, e depois houve nova gente que apareceu com o tempo, mas penso que o núcleo duro continua o mesmo”, conclui. São os mesmos e continuam também a lutar em armas, através do terrorismo, para alcançarem o mesmo: a construção de um califado.

“Têm esse desejo, de facto, de retiraram o Estado moçambicano e estabelecerem um Estado dirigido pela ‘sharia’, pela Lei islâmica, portanto, um califado.” Sabe-se isso, esse propósito, mas não muito mais. “A maioria da comunicação [do grupo] passa hoje pelo Estado Islâmico, e é muito calibrada e eles nunca explicitaram exactamente onde está o califado, qual é o tamanho, será que é só Cabo Delgado ou é todo o Moçambique? Vai ser [também] no Congo, vai ser parte da Tanzânia? É um mistério”, diz.

“Claro que, se na prática se o califado é ter três bases na floresta de Macomia, então já o têm… talvez consigam um meio-termo, talvez não queiram bem um califado absoluto, mas sim um certo reconhecimento… não sabemos”, afirma o professor. “Por isso, penso que inclusivamente na Igreja há pessoas que querem saber mais e há quem proponha um diálogo, para ver quem são e se estabelecerem pontes. Pois estamos há mais de sete anos a dizer que não sabemos quem são, não sabemos o que querem. Talvez seja a altura de tentar saber isso”, acrescenta.

Igreja Católica tem influência em Cabo Delgado

De facto, sublinha o professor de Belfast, a Igreja Católica goza de prestígio e tem “muita influência” em Cabo Delgado. E isso viu-se, por exemplo, no caso das duas religiosas que estiveram sequestradas durante 24 dias em Mocímboa da Praia no ano de 2020. Os terroristas “trataram muito bem” as irmãs Inês Ramos e Eliane da Costa, ambas da congregação de São José de Chambéry, “e a quem disseram que tinham muito respeito pela Igreja, pelo trabalho social que faziam, e que eram gente de fé, sérios, e, portanto, tinham respeito”, diz.

“A Igreja tem muitas obras sociais e está envolvida em trabalho de diálogo inter-religioso na província. Penso que a Igreja deve ser envolvida em qualquer tentativa de resolução do conflito”, acrescenta.

“Há riscos para a comunidade cristã”

No entanto, apesar do respeito que os terroristas manifestaram às duas irmãs que estiveram sequestradas em Mocímboa da Praia, a verdade dos factos é que ao longo destes anos de insurgência, diversas comunidades cristãs foram já atacadas, com igrejas queimadas e missões atacadas, como aconteceu por exemplo em 2022, em Chipene, na Diocese de Nacala, em que uma religiosa italiana, a Irmã Maria de Coppi, de 83 anos de idade, foi assassinada a tiro.

Podemos dizer que as comunidades cristãs estão sob ameaça, são um alvo destes terroristas ligados ao Estado Islâmico? “Essa é uma questão complicada. Há quem argumente que o grupo está dividido sobre isso, e isso é uma possibilidade. Ou seja, teríamos por um lado, como vimos com as irmãs [sequestradas em Mocímboa da Praia] um respeito pela Igreja, mas temos, por outro lado, violência sobre comunidades cristãs, a queimaram igrejas e destruíram as cruzes… e isso foi propositadamente contra o cristianismo. O discurso que vem, através do Estado Islâmico, é que essa é uma terra muçulmana e não deve haver outras religiões”, explica Eric Morier-Genoud.

“Mas temos ao mesmo tempo uma dinâmica que se desenvolveu em particular no último ano, e que avança que, seguindo a ‘sharia’, pode-se poucar cristãos se eles se submetem e pagam impostos ao grupo. Portanto, se os cristãos aceitarem a autoridade do Estado Islâmico, podem pagar impostos e continuam a viver”, diz.

“Portanto parece haver um certo desacordo, uma certa indefinição por parte dos insurgentes sobre o que querem fazer. Infelizmente, vimos já sinais de abertura mas também actos de violência”, diz ainda, concluindo que “há riscos para a comunidade cristã, sem dúvida”.

Armas roubadas, conexões internacionais

Esta indefinição estratégica pode ser uma consequência também das cumplicidades que os terroristas foram tecendo ao longo do tempo num espaço geográfico muito amplo, até porque as fronteiras são porosas e os grupos armados movimentam-se naturalmente com alguma facilidade.

“Não sabemos muito, mas é claro que a condição mais forte vem através da Tanzânia, há muitos tanzanianos no grupo [terrorista], e tanzanianos que, em geral, são bem formados religiosamente, ou mais bem formados do que os moçambicanos, e parece que uma parte da logística passa pela Tanzânia. Digo logística e não tráfico de armas, pois às vezes fala-se no armamento que vem da Tanzânia, mas a maior parte das armas [dos insurgentes de Moçambique] são simplesmente recuperadas ao exército, quando fazem os ataques”, esclarece. “São armas roubadas e mostram com muito orgulho essas armas como se fossem uma espécie de troféu.”

E os especialistas em armamento que analisam essas imagens, dizem que até agora, “todo esse armamento foi recuperado ou roubado ao exército de Moçambique”. Isso não significa que não haja apoio do exterior.

O fabrico de bombas caseiras que são colocadas nas estradas, diz o professor, especialmente o equipamento para a detonação, “parece passar pela Tanzânia”. “E houve também contactos com o Congo, mesmo que o Congo fica longe – são cerca de 2.000 km. Também há preocupação com o Maláui que, esse sim, fica muito perto e tem uma comunidade muçulmana importante. Depois, imaginamos, um ou outro formador deve ter vindo dos países árabes, através do Estado Islâmico. Mas, no fundo, o grupo tem uma dinâmica sobretudo local, moçambicana, com uma parte tanzaniana e com conexões fora.”

A jihad era inevitável? “A resposta é ‘não’!”

E ao falar-se de uma dinâmica local, a origem de tudo, segundo o professor, está em Mocímboa da Praia. “Vários dos líderes vêm de Mocímboa da Praia ou da zona de Palma.” O professor esteve em Portugal para apresentar o seu mais recente livro, cujo título apresenta logo uma abordagem ao problema do terrorismo em Cabo Delgado. O livro, “Jihad inevitável?  – Muçulmanos e política em Moçambique depois da independência”, da editora Colibri, analisa as origens da insurreição. “O título é uma provocação. A ideia era provocar uma discussão, para pensarmos um pouco a dinâmica histórica que está por trás desta insurgência. E a resposta que eu avanço é que não, a jihad não era inevitável. Há muitos factores históricos, com decisões, várias decisões, que acumularam e acabaram com este resultado.”

Paulo Aido | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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