IRAQUE: “A fé mantém-nos vivos”, afirmam arcebispos Semaan e Warda sobre os 10 anos da invasão jihadista da Planície de Nínive

Foi há 10 anos. A ameaça jihadista sobre os cristãos do Iraque teria o seu momento mais duro e trágico na noite de 6 para 7 de Agosto de 2014. A chegada dos terroristas do Estado Islâmico provocou a fuga a cerca de 100 mil pessoas.

A invasão das terras bíblicas da Planície de Nínive deu origem também a uma enorme operação de ajuda humanitária em que a Fundação AIS teve um papel preponderante. Agora, para assinalar a data, a AIS organizou uma conferência ‘on-line’ em que participaram dois destacados dirigentes da comunidade cristã: os arcebispos Nizar Semaan e Bashar Warda.

“Foi muito difícil, foi duro, mas conseguimos.” D. Nizar Semaan, Arcebispo siríaco de Adiabene, sintetizou nestas palavras o que aconteceu há dez anos, num dos momentos mais duros já vividos pela comunidade cristã do Iraque. Na noite de 6 para 7 de Agosto, a chegada dos homens de negro, dos temíveis jihadistas do grupo Estado Islâmico, provocou a debandada das populações que viviam na Planície de Nínive. Foram cerca de 100 mil pessoas. O mundo assistiu então, incrédulo, à fuga desordenada de homens, mulheres e crianças rumo às terras do Curdistão iraquiano, procurando aí abrigo face à ameaça dos terroristas.

Numa conferência ‘on-line’, organizada pela Fundação AIS Internacional, os arcebispos Nizar Semaan e Bashar Warda recordaram esses tempos e deram voz aos anseios da comunidade cristã que tanto tem sofrido neste país do Médio Oriente.

“O que aconteceu em 2014 foi uma tentativa de genocídio dos cristãos”, lembrou Warda, Arcebispo caldeu de Erbil.

Podem imaginar, numa noite, cerca de 100 mil pessoas terem de deixar as suas casas, igrejas, mosteiros e as suas memórias. Os terroristas do ISIS queriam erradicar a presença cristã da zona, mas graças a Deus não conseguiram.”

“As pessoas aqui são como as oliveiras. Podem cortá-las, queimá-las, mas passados 10 ou 20 anos continuarão a dar fruto. Tentaram tudo, mas nós permanecemos e, como Igreja, fazemos tudo para dar um sinal de esperança”, completou.

“O ISIS É UMA MENTALIDADE”

Neste momento, a comunidade cristã enfrenta vários desafios, até ao nível da segurança, tanto mais que cresce de dia para dia o receio de um conflito regional que envolva Israel, o Hamas, o Líbano e até o Irão. Para já, sente-se um clima de tensão a nível interno, na esfera política no Iraque. “A tensão é elevada entre certos partidos, muito elevada, e dá-nos a impressão de que pode acontecer algo com que temos de ter cuidado e estar bem preparados, mas até agora não vimos esse conflito tornar-se violento”, afirmou D. Bashar Warda.

De qualquer forma, nessa equação de medo já não entra o Daesh ou ISIS, como os terroristas do grupo Estado Islâmico são conhecidos. Mas ambos os prelados reconhecem que, apesar de os jihadistas terem sido derrotados, a sua ameaça não desapareceu por completo. “O ISIS é uma mentalidade que continua presente”, disse o Arcebispo siríaco de Adiabene. “É preciso tempo para lidar e ultrapassar este problema”, advertiu.

“Há duas maneiras de nos livrarmos desta mentalidade: em primeiro lugar, temos de nos concentrar na educação, não apenas com escolas cristãs, mas temos de pressionar o Governo para que tenha um sistema educativo moderado que incentive as pessoas a respeitar os outros. A segunda forma é ter uma Constituição baseada na humanidade e não na religião. Isso ajudará os Cristãos a permanecer no Iraque, a libertarem-se deste medo. Estamos sempre com medo. O que quer que aconteça à nossa volta, no Líbano, em Gaza, em qualquer lugar, os Cristãos são sempre afectados”, disse ainda o Arcebispo Semaan.

A APOSTA NA EDUCAÇÃO

A questão da educação foi também enfatizada pelo Arcebispo Warda. Uma educação aberta a todos. Reconhecendo que os Cristãos têm tido acesso a várias ajudas, não hesitaram em estender a mão a outras comunidades também necessitadas. 

“Partilhámos parte dessa ajuda com os Muçulmanos e os Yazidis nos campos de refugiados. Após a derrota do ISIS, criámos o Programa de Bolsas de Estudo do Papa Francisco e perguntámos à Fundação AIS se podíamos incluir os Yazidis e os Muçulmanos em situação de grande necessidade. Creio que evangelizamos partilhando esta bondade com as pessoas, mostrando-lhes o Evangelho da solidariedade. Deixamo-las respirar Cristo através das obras de bondade que partilhamos com elas”, explicou o Arcebispo Warda, sublinhando que a educação é a chave para um futuro de coexistência, razão pela qual a Igreja Católica tem investido tanto nesta área com a ajuda da Fundação AIS.

No auge da crise, quando se deu a fuga de praticamente todas as famílias cristãs da Planície de Nínive, chegou-se a temer que, se nada fosse feito, toda a comunidade acabasse por abandonar até o país. No entanto, e graças aos projectos de reconstrução apoiados nomeadamente pela Fundação AIS, as previsões mais pessimistas transformaram-se em boas notícias, segundo o Arcebispo Bashar Warda. 

“Em 2014, tínhamos 13.200 famílias registadas, 11.000 das quais permaneceram. Destas, 9 mil regressaram mais tarde a Nínive. Isto é algo pelo qual devemos estar gratos. As 2 mil que partiram devem ter ido para a Jordânia, o Líbano e a Turquia, e depois para o Ocidente.”

A PRESENÇA DA IGREJA

Estes dados foram sublinhados também pelo Arcebispo Semaan. Cerca de metade dos Cristãos de Karakosh, a maior cidade exclusivamente cristã do Iraque, cuja população fugiu em massa antes da ocupação pelo ISIS, também já regressou a casa. “Antes do ISIS, tínhamos 50.000 pessoas em Karakosh, e agora temos talvez 25 mil”, disse o prelado.

Dos que não voltaram, das famílias cristãs que emigraram, sobram poucas esperanças que venham ainda a regressar. Turquia, Estados Unidos, Austrália e Europa são destinos onde é possível encontrar agora muitos dos cristãos iraquianos. O regresso à pátria será difícil e os dois arcebispos católicos estão conscientes de que isso só acontecerá eventualmente quando tiverem a sua situação completamente regularizada nos seus novos países, de modo a poderem sair novamente, caso surja uma nova crise, caso se sintam de novo ameaçados. De qualquer forma, como lembrou D. Bashar Warda, “não se pode pedir ninguém para ficar se não tiver pelo menos uma casa…”.

Mas tão importante quanto essas infraestruturas para a vida dos cristãos, é também a presença da Igreja. Há uma ligação muito forte, antiga, de confiança. “É preciso compreender que as pessoas estão muito ligadas à Igreja. Quando têm um problema com a polícia ou um problema de saúde, não se dirigem às autoridades eleitas ou aos partidos políticos, dirigem-se ao bispo. É por isso que vos encorajo a ajudar pastoralmente a Igreja, porque se a Igreja for forte, a comunidade permanecerá. Se o padre se for embora, a comunidade vai-se embora”, alertou o Arcebispo Warda.

A AJUDA DA FUNDAÇÃO AIS

Na conferência participou também a presidente executiva da Fundação AIS Internacional que reafirmou o compromisso da instituição no apoio à comunidade cristã iraquiana.

Regina Lynch lembrou que, desde o primeiro instante, há dez anos, quando a invasão jihadista aconteceu, a AIS esteve presente ao lado das famílias cristãs, ao lado dos sacerdotes e das religiosas, ao lado da Igreja naqueles longos dias que se prolongaram por muitos meses e anos. “Quando o ISIS invadiu o país, os Cristãos fugiram para o Curdistão, onde pelo menos estavam seguros, mas a maior parte ficou sem nada. A Fundação AIS foi a primeira organização internacional a ir em seu auxílio. Nos anos seguintes, ajudámos a assegurar as necessidades básicas dos deslocados, depois o alojamento e, por fim, a reconstrução das suas casas, para que aqueles que quisessem regressar às suas cidades e aldeias o pudessem fazer, assim que o ISIS tivesse sido repelido”, disse Regina Lynch. “Nunca demos tanta ajuda a um país, a uma comunidade como no Iraque”, acrescentou a responsável.

A Fundação AIS tem vindo a desenvolver projectos com as Igrejas locais no Iraque desde 1972. Em Julho de 2014, face à ameaça jihadista, a Fundação AIS foi a primeira organização a ajudar no terreno e, desde então, já apoiou cerca de 500 projectos com mais de 56 milhões de euros de ajuda, desde assistência humanitária de emergência a projectos de reconstrução e bolsas de estudo.

Paulo Aido e Filipe D’Avillez

Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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