O Padre Hugo Alaniz, sacerdote argentino em missão em Alepo, na Síria, está em Portugal a participar na Red Week, a Semana Vermelha, iniciativa da Fundação AIS de alerta para a situação de perseguição aos cristãos no mundo. O padre, que pertence ao Instituto do Verbo Encarnado, recordou os tempos caóticos que se viveram há um ano, em Dezembro, quando se deu a queda do regime de Bashar al-Assad, e espera que esta iniciativa da AIS ajude o mundo a tomar consciência de que, em muitos países, em muitos lugares, “os cristãos não têm a graça de viver em liberdade”.
Como é que o Padre Hugo, um sacerdote argentino, foi parar à Síria?
É uma longa história, mas vou tentar resumi-la em poucas palavras. Eu era um jovem normal, por dizer assim, na Argentina. Tive de fazer o serviço militar. Naquela altura, o serviço militar era obrigatório. Nessa altura, comecei a pensar, a mudar um pouco a minha vida, para melhor. A fazer algo, pensando não somente em mim mesmo, mas nos outros. E, pouco a pouco, veio a ideia de me consagrar.
No início, eu não queria saber. Mas, aos poucos, essa ideia foi melhorando, foi crescendo. E, por fim, decidi consagrar-me num instituto missionário, numa congregação missionária, que é o Instituto do Verbo Encarnado. Somos missionários. E, desde o início, eu sabia que podia ir para qualquer lugar do mundo.
Antes da ordenação diaconal, perguntaram-se se havia algum lugar especial para onde eu quisesse ir, disse que não. Que não tinha nenhuma preferência. Perguntaram-me então se eu queria ir para o mundo árabe. Disse que sim. Primeiro, fui para o Egipto, estudar o árabe. Depois, estive na Jordânia, durante muitos anos. E, finalmente, fui parar à Síria.
E chegou à Síria e o país estava em guerra, já na altura. E passou por alguns dos momentos mais difíceis da guerra civil. Nomeadamente, por exemplo, uma viagem. Há um relato seu de uma viagem entre Damasco e Alepo em 2017. Esse terá sido um dos momentos mais duros que passou na guerra?
Houve momentos mais difíceis. Os missionários que estiveram antes de nós, em 2014, 2015, 2016, julgo que terão vivido os momentos mais difíceis, mais difíceis da guerra.
Quando nós chegámos [2017], sim, o país ainda estava em conflito. Esteve em conflito até 2020. E a situação continuava muito feia, muito amarga, especialmente para as famílias. A viagem [que refere], ainda a tenho muito presente, sim. Foi a viagem desde Damasco a Alepo, por terra, pelo deserto. A estrada principal estava cortada. Tivemos de ir pelo deserto, por um caminho muito longo, evitando os lugares dos islamistas. E, finalmente, chegámos a Alepo.
Foi uma viagem não apenas muito difícil, mas muito triste… Ver tantas cidades e povos destruídos, escombros, escombros. Também me recordo de quando chegámos a Alepo. Eu conhecia a cidade antes da guerra. Ver uma cidade, uma cidade que era muito bonita, também destruída… Tudo ao redor de Alepo em escombros.
Mas o que mais me impactou não foi tanto isso, não foi a viagem, mas a realidade das famílias. Todas as famílias estavam a viver uma situação muito triste, particularmente triste. Não somente pela situação económica, mas porque não havia uma visão de futuro. O que seria deles, dos seus filhos? Sim, foram momentos difíceis, e até ao dia de hoje continuamos também a sofrer a mesma realidade. Tivemos momentos muito difíceis.
O Padre Hugo, em algum instante, nos momentos mais duros da guerra, sentiu medo, sentiu a sua vida ameaçada?
Tivemos momentos muito difíceis, também passámos momentos críticos. Sentir medo, graças a Deus, não. Não. Sentir medo, não, mas sim uma certa angústia, por assim dizer, pela minha família. Especialmente por eles. Porque nós consagrámo-nos a Deus, e sabemos que Deus nos sustenta, especialmente nos momentos difíceis. Temos essa convicção e temos de fazer crescer essa convicção, e isso realiza-se justamente nos momentos críticos, nos momentos de prova. Mas é difícil que as nossas famílias e amigos entendam isso. É difícil.
Mas, também nesses momentos, quando se pensa na família, entregamo-los a Deus, sabendo que Deus não nos faz faltar nada, especialmente através da nossa querida Mãe, a Virgem Maria.
» Os dias de caos há um ano, na queda do regime
Vai fazer agora um ano, no dia 8 de Dezembro, que caiu o regime de Bashar Al-Assad, que abandonou a Síria. Agora há um novo líder no país, uma nova classe dirigente, digamos assim. Mas a situação no país não mudou muito para as pessoas. Como é que define hoje em dia a vida, o dia-a-dia dos sírios, e em especial dos Cristãos?
Perguntou-me se tínhamos tido medo quando se deu a mudança. Quando caiu o Governo de Bashar Al-Assad e entraram esses grupos opositores, que depois se tornaram a autoridade do país, esses momentos também foram muito feios. Houve uma invasão.
Nós estávamos em Alepo. Dentro de Alepo havia caos. Cristãos e muçulmanos tentavam escapar para a parte este de Alepo, para o deserto, porque os invasores vinham da outra parte…. Faz agora um ano. E nós, com os nossos missionários, procurámos localizar os nossos jovens. Temos residências para jovens universitários, para as nossas religiosas, para as famílias… [e tentámos levá-los para] lugares mais seguros, sem sabermos o que iria acontecer.
Saíram da cidade?
Não, não saímos da cidade. Ficámos lá. Nós vivemos no Episcopado, que é na parte oeste de Alepo, de onde vinha a invasão. E aí temos as residências também, ao lado da cidade universitária. E, então, tivemos de levar todas essas pessoas para a outra parte da cidade, onde temos nossa pequena igreja. Aí temos uma cave grande onde acomodámos muitas famílias, quase 200 pessoas. E vigiámos as portas.
Eu fiquei com o bispo, na parte oeste, porque aí temos também as religiosas carmelitas e as Irmãs da Madre Teresa de Calcutá, com os idosos, que não podíamos deslocar. Nós ficámos lá, esperando o que não sabíamos que iria acontecer.
Que a tempestade passasse…
Sim. Deus deu-nos, nesse momento, a força para confiar n’Ele e, desse modo, também para apoiar outros. Foram momentos muito particulares, em que não apenas houve uma mudança de governo, mas foram momentos caóticos. Momentos em que se pensa no fim do mundo, o que poderia ser uma pequena comparação, tal era o caos, a guerra, a morte.
Porque esses dias, logo no dia seguinte à invasão, da tomada de Alepo, com o nosso bispo, D. Hanna Jallouf, fomos procurar esses líderes para ver quem eram, o que queriam, e para pedir que as nossas famílias fossem protegidas. E, nesse trajecto em que começámos a ir a diferentes lugares, havia muitas pessoas mortas no caminho. Muitos morreram. Especialmente soldados do Governo anterior.
Momentos muito feios, mas, por isso, em que se tem a possibilidade também de se pensar em algo mais. Não apenas nisso, no que foi a invasão, no que é a morte, mas também na mensagem evangélica. “Não tenham medo, Eu estarei convosco até ao fim dos tempos.” Essa é a mensagem que temos de recordar sempre, de que nem tudo termina no ódio, nem tudo termina na perseguição, nem tudo termina no mal que muitos procuram fazer neste mundo, mas justamente no testemunho de outros.
“Esperemos que o governo possa controlar os grupos mais extremistas”
Podemos dizer que hoje os Cristãos estão ameaçados, de alguma forma, na Síria? Há um grande desejo da comunidade cristã de ir embora, de abandonar o país?
Se os Cristãos estão ameaçados neste momento na Síria? Directamente, não. Directamente, não, porque o Governo, o novo Governo precisa da presença dos Cristãos. É um país que está em ruptura, é um país em ruptura económica, que está a tentar fazer acordos com países do primeiro mundo, ou países árabes. Precisa da presença das minorias, especialmente dos Cristãos, para dar essa imagem de abertura. Não sei se é por convicção, espero que sim. E, por isso, não há uma perseguição aberta contra os Cristãos na Síria.
Os nossos vizinhos são muçulmanos. Temos uma relação muito boa com eles. A população, as famílias comuns, as famílias da zona, a nossa pequena igreja está na periferia, fora de Alepo, é uma zona semi-industrial. Muitos mecânicos, electricistas, carpinteiros, a maioria são muçulmanos. Um bairro que antes era dos Arménios. Mas, agora, como os Arménios também foram embora, pouco a pouco, eles abandonam o país, e eles, quando vêem um sacerdote, uma religiosa, cumprimentam-nos com muito respeito.
Se houve, em algum momento, perseguição? Sim, houve perseguição. Mas nós também acreditamos que a convivência é possível. E, de facto, é algo que estamos a viver no dia a dia. Esperamos que o Governo, este novo Governo, possa controlar com pulso firme esses grupos, os grupos mais extremistas, que também estão a provocar, ou já provocaram, tanto mal a diferentes famílias, por causa do ódio.
Está em Portugal a convite da Fundação AIS. O que é que espera desta visita e como é que vê a solidariedade, a ajuda da Fundação AIS à comunidade cristã da Síria?
É uma graça para mim estar aqui em Portugal, por tudo o que significa quando se fala em Portugal. Um religioso recorda de imediato Fátima. A mensagem de Fátima é uma mensagem muito viva até ao dia de hoje.
Nós fomos convidados neste momento para vir cá, através da Fundação AIS, para dar o testemunho da vida dos Cristãos no Médio Oriente, especialmente na Síria. Lembrar, nesta Semana Vermelha, o que tantos cristãos e outros estão a sofrer no mundo, a perseguição, a discriminação. Esperamos que o nosso testemunho possa reavivar a consciência de muitas pessoas.
O que nós esperamos é que, não só nestes dias, se recorde a situação dos Cristãos no mundo, em muitos lugares que não têm a graça de viver em liberdade. O que esperamos é que sempre se lembrem, especialmente nas orações, de pedir a Deus a graça de que o nosso povo, os nossos cristãos, os nossos amigos, as minorias, possam viver com dignidade. É o que esperamos.
E, sem dúvida, a Fundação AIS tem-nos ajudado em todos estes anos, e tem ajudado os outros bispos em diferentes obras de caridade. E, claro, se a Fundação AIS nos ajuda é porque há muitas famílias que estão a apoiar esta instituição, que estão a ajudar esta instituição. Esperamos que muitos mais possam ajudar e confiar na obra da Igreja.
Uma palavra aos benfeitores da Fundação AIS...
Gostaria de agradecer o convite da Fundação AIS Portugal, pelo facto de estar aqui. Como já disse, é uma graça para nós visitar este país, este lindo país. E, através da Fundação AIS, agradecer a todos os benfeitores. Como também já disse, continuem a acreditar na obra da Igreja.
Quando eu era jovem, na Argentina, dizia, porque é que o Vaticano não vende todo o ouro que tem e o dá aos pobres? Esse ouro não pertence ao Papa, é de toda a Igreja, é da humanidade. Mas, quando me tornei religioso, vi que a Igreja ajuda, mas não faz publicidade.
A Igreja está a ajudar muitas pessoas, de muitas maneiras. Especialmente na Síria, através do projecto “Gota de Leite para as crianças”, a cantina que temos para os idosos, para muitos idosos, para os medicamentos, para as cirurgias, para os estudantes, está a ajudar de muitas, muitas maneiras. E isso faz-se justamente com a ajuda dos que acreditam na obra da Igreja.
Peço a todos que continuem a contribuir, que rezem também pelas famílias, que rezem pelos missionários, que lá estamos, que muitas vezes também temos os nossos momentos de provas e precisamos da fortaleza de Deus. E também nós, desde a Síria, comprometemo-nos a continuar a rezar por vocês.
Paulo Aido | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt







