Esteve nove anos em cativeiro numa floresta no norte da Nigéria. Maryamu Joseph tem hoje 16 anos, mas era ainda uma criança quando foi levada da sua aldeia, Bazza, por terroristas do Boko Haram. Raptada em 2014, aos 7 anos, juntamente com mais 21 pessoas, Maryamu passou todo este tempo num verdadeiro inferno no acampamento dos jihadistas na floresta de Sambisa. Conseguiu fugir há quatro meses e aceitou, agora, partilhar as dolorosas memórias desses nove anos de terror com Patience Ibile, da Fundação AIS. Memórias que nos obrigam a não esquecer também todos os outros prisioneiros, todas as outras vítimas deste grupo terrorista. Leah Sharibu, uma rapariga cristã raptada em 2018, quando tinha 14 anos de idade, é um desses casos…
As palavras de Maryamu à Fundação AIS são um testemunho poderoso que ajuda a compreender melhor a ameaça brutal que paira sobre os cristãos na Nigéria, mas muito particularmente no norte do país. Maryamu Joseph foi raptada, violentada, passou nove anos em cativeiro até que conseguiu fugir. Está agora a tentar recuperar do trauma por que passou, das experiências dramáticas que foi forçada a testemunhar, como o assassinato brutal de um dos seus irmãos, decapitado à sua frente. Hoje, Maryamu Joseph está em tratamento no Centro Traumático da Diocese de Maiduguri, construído com o apoio da Fundação AIS e que se destina a ajudar precisamente quem passou por experiências de stress pós-traumático.
O ataque, a conversão forçada, os castigos
“O Boko Haram atacou a minha comunidade em Fevereiro de 2013. Depois de uma matança que provocou inúmeros mortos, levaram 22 de nós para uma floresta densa e caminhámos durante 22 dias antes de chegarmos ao destino. Puseram os cristãos em jaulas, como animais”, recorda à Fundação AIS na sua língua materna, hausa. “A primeira coisa que eles fizeram foi converter-nos à força ao Islão. Mudaram o meu nome para Aisha, um nome muçulmano, e avisaram-nos para não rezarmos como cristãos, ou seríamos mortos. Quando fiz 10 anos, queriam casar-me com um dos chefes, mas eu recusei. Como castigo, trancaram-me numa jaula durante um ano inteiro. Traziam comida uma vez por dia e passavam-na por debaixo da porta, sem nunca abrirem a jaula.”
O assassinato cruel de um dos irmãos
Todo o relato é assim, de uma crueza imensa, como quando a jovem cristã, hoje com 16 anos de idade, lembra o dia em que os terroristas capturaram também dois dos seus irmãos e os levaram para o acampamento onde ela se encontrava. “Em Novembro de 2019, capturaram dois dos meus irmãos e trouxeram-nos para o acampamento. Só Deus sabe como eu me senti quando os vi. Estava cheia de raiva intensa, apeteceu-me pegar numa catana e massacrá-los um a um. Eles pegaram num dos meus irmãos e mataram-no mesmo diante dos meus olhos. Cortaram-lhe a cabeça, depois as mãos, as pernas e o estômago. Trataram o corpo do meu irmão tal como uma galinha antes de ser cozinhada. Fiquei devastada. Disse a mim mesma: ‘Quem será o próximo?’ Uns dias depois comecei a ter pesadelos, comecei a alucinar…”
A fuga para a liberdade
Mas o pesadelo haveria de acabar. Foi há quatro meses, no dia 8 de Julho deste ano que, aproveitando um momento de distração, Maryamu Joseph fugiu com uma dúzia de outros companheiros de infortúnio. Na entrevista a Patience Ibile, conta também como tudo se passou. “A 8 de Julho de 2022, por volta da uma da manhã, o acampamento estava calmo e todos estavam a dormir, excepto os meus companheiros de cabana e eu. Nós 12 tínhamos decidido fugir. No início, fiquei na dúvida se devia ou não ficar por causa da minha irmã mais nova, que estava noutra cabana, mas achei que iria passar o resto da minha vida neste acampamento, por isso tinha de partir, custasse o que custasse. Saímos furtivamente do acampamento e corremos através da floresta densa.” A fuga haveria de continuar durante mais dois dias até que conseguiram chegar a Maiduguri. “Quando chegámos, desmaiei, e quando acordei, estava nos braços de um bom samaritano. Ele deu-nos água e comida para recuperarmos as forças, e mais tarde vim para o acampamento gerido pela Igreja.”
Nove anos de angústia, de terror
Agora, é tempo para começar a libertar-se das sombras do pesadelo em que viveu nestes nove anos. “Sofremos tanto às mãos destas pessoas impiedosas e sem coração. Durante nove anos assistimos ao derramamento do sangue inocente dos meus companheiros cristãos, mortos por pessoas que não valorizam a vida. Assassinaram sem remorsos, como se fosse uma coisa normal. Estes nove anos desperdiçados na floresta de Sambisa não podem ser esquecidos num piscar de olhos. As palavras não fazem justiça ao que eu passei.” As palavras, diz Maryamu, são insuficientes para calar toda a revolta, toda a angústia, todo o sofrimento. Foram “nove anos de cativeiro, nove anos de tortura, nove anos de agonia”.
Aprender a libertar-se do ódio
Agora é tempo de recomeçar, tentando o impossível, tentando regressar aos tempos felizes em que tinha apenas 7 anos e olhava o mundo com inocência. A experiência no Centro de Traumatologia está a ser muito importante para este processo. “Quando cheguei a Maiduguri, antes de iniciar o meu processo de cura, não suportava os homens! Não conseguia olhá-los de frente. Tinha nojo deles! Agora, graças ao meu processo de cura, aprendi a deixar o ódio de lado.” Um caminho que está a ser feito lentamente e que tem vindo a levar a jovem Maryamu Joseph de regresso ao cristianismo, de regresso a casa. “A primeira coisa que fizeram foi rezar por mim e encorajar-me a voltar à minha fé. Estou feliz por regressar ao Cristianismo. Desde que regressei a Maiduguri, a dor diminuiu. Espero que, com o tempo, Deus me ajude a superar a amargura e a abraçar a paz, embora não veja isso acontecer tão cedo. Continuo a sentir que a dor ecoa nos meus ouvidos. Continuo a ter pesadelos, embora não tão maus como antes. Graças ao Centro de Trauma, já não tenho alucinações.”
O Centro de Traumatologia
O Centro de Traumatologia de Maiduguri foi edificado com a ajuda da Fundação AIS. O objectivo desta estrutura diocesana é de ajudar as vítimas da violência do Boko Haram, um grupo terrorista de inspiração jihadista que pretende a criação de um ‘califado’ no nordeste do país, ameaçando não só essa zona da Nigéria como também as regiões fronteiriças do Níger, Chade e Camarões. Desde 2009, os ataques terroristas provocaram já mais de 40 mil mortos e mais de 2 milhões de deslocados. O centro de Traumatologia, que deverá ser inaugurado este mês de Novembro, já ajudou mais de duas dezenas de pessoas a ultrapassar situações de trauma e de stress pós-traumático, e procurou também dar aconselhamento e formação vocacional às vítimas. Maryamu Joseph é uma delas.
Voltar à escola, aprender a perdoar
Neste momento, esta jovem de 16 anos procura ainda libertar-se dos fantasmas que a habitam, dos medos que a perseguem, mas tem um sonho concreto: voltar à escola, aprender inglês e, se possível, estudar Direito, “para defender os indefesos”. O futuro é ainda um lugar incerto. Tal como o espaço para Deus, o regresso ao Cristianismo. Ainda há muita revolta nas suas palavras. “Voltar ao Cristianismo após nove anos de prática de Islamismo envolve muito trabalho árduo. No início parece quase impossível. A minha mente ainda está pesada, cheia de raiva, amargura e angústia. A dor vai e vem. Num minuto estou feliz, no seguinte a tristeza regressa.” Mais tarde ou mais cedo, Maryamu vai ter de se enfrentar com o ódio que a habita ainda sempre que penda nos terroristas que a aprisionaram, que a violentaram, que maltrataram e mataram os ente-queridos. Será possível o perdão? “Perdoar àqueles seres sem coração? Acho que não sou capaz de os perdoar. Preciso de tempo para digerir tudo o que me aconteceu e depois talvez, só talvez, possamos então falar de perdão. Mas hoje, não, não os posso perdoar…”
Não esquecer Leah Sharibu
A história de Maryamu faz recordar a de Leah Sharibu, uma jovem cristã em cativeiro do Boko Haram desde o dia 19 de Fevereiro de 2018. Nesse dia, Leah foi raptada juntamente com cerca de uma centena de colegas da sua escola em Dapchi. A sua história é também extraordinária e emblemática. Poucos dias após o ataque à escola, todas as outras raparigas foram libertadas menos ela. Leah Sharibu, então com 15 anos de idade, recusou renunciar ao cristianismo, como os terroristas exigiam. Teve a coragem de continuar em cativeiro para permanecer fiel à sua religião. Apesar de todos os apelos, nomeadamente dos seus pais e de instituições como a Fundação AIS, esta jovem cristã continua refém do Boko Haram. Desconhece-se exactamente onde está e como se encontra. Em Janeiro de 2020, uma trabalhadora humanitária – que também esteve em cativeiro e entretanto foi libertada – afirmou que Leah Sharibu estaria viva e aparentemente de boa saúde. Desde então, paticamente não houve mais nenhuma informação sobre ela.
Paulo Aido com Patience Ibile | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt