MOÇAMBIQUE: “O povo vai domesticando o medo”, diz Bispo de Pemba sobre os 7 anos de terrorismo em Cabo Delgado

D. António Juliasse, que esteve de passagem por Portugal, vindo de Roma, da visita ‘ad limina’ dos Bispos de Moçambique, lembrou o enorme rasto de “sofrimento e fome” provocado nos últimos sete anos pelos terroristas em Cabo Delgado e de agradecer a ajuda que a Fundação AIS tem dado à Igreja do seu país, nomeadamente à Diocese de Pemba. E fez questão de se encontrar pessoalmente com Sílvia Duarte, a cabeleireira que, “vestindo a camisola da AIS”, protagonizou, em Maio uma corrida solidária por Cabo Delgado, gesto que o deixou muito comovido.

“Cabo Delgado não tem paz.” A frase de D. António Juliasse, sábado passado, em Lisboa, em entrevista à Fundação AIS após a visita ‘ad limina’ dos bispos moçambicanos em Roma, é um resumo da situação em que se encontra a região norte de Moçambique sete anos após o primeiro ataque terrorista em Mocímboa da Praia, em 5 de Outubro de 2017. Desde esse sobressalto já morreram mais de cinco mil pessoas e haverá também mais de 1 milhão de deslocados.

Em declarações à Fundação AIS, o prelado denunciou o enorme “sofrimento” que continua a ser vivido pelas populações locais. “Já passam sete anos”, diz D. António Juliasse.

"[São] sete anos de deslocados, sete anos de mortos, sete anos em que as pessoas vivem num sofrimento muito grande, com fome, porque não podem cultivar [as terras] por causa da insegurança, de doenças porque não têm medicamentos, porque o posto que existia mais próximo da aldeia não funciona ou está destruído, sete anos em que as crianças não estão a estudar como deviam.”

D. Juliasse lembrou ainda que as próprias estruturas da administração pública deixaram de funcionar na sua plenitude na região, trazendo com isso ainda mais dificuldades a uma população já de si muito pobre. Tudo isto, diz D. Juliasse, faz com que 5 de Outubro seja sempre “um dia triste” em que também não podem sem esquecidos “os militares que morreram e que também são moçambicanos”.

Ao fazer um balanço destes anos de violência e terror, D. António Juliasse lembrou ainda a enorme “incerteza” em que vive o povo. Um povo que “vai domesticando o medo, vai convivendo com a insegurança, e em que cada morte, agora, é como se fosse um fatalismo”. “E isso não é normal”, acrescenta.

DESPERTAR DE CONSCIÊNCIAS

A data de 5 de Outubro, que regista o primeiro ataque terrorista em 2017, acontece, curiosamente, logo após o Dia da Paz e Reconciliação, um feriado nacional moçambicano que marca a assinatura do Acordo Geral de Paz de 1992, em que, graças ao esforço diplomático da Comunidade de Santo Egídio, se pôs fim a um período de 15 anos da trágica guerra civil no país.

A proximidade entre as duas datas, em que nos discursos oficiais de 4 de Outubro se exalta a importância do acordo de paz e se ignora a evidência do conflito armado no norte do país, leva o Bispo a falar em falta de solidariedade.

“Desde que estou em Pemba, tenho sempre dificuldade em celebrar o dia 4 de Outubro como Dia da Paz. Na verdade, devíamos estar a celebrá-lo como Dia dos Acordos de Roma, porque paz, em Cabo Delgado, não existe. E custa-me escutar discursos em que se diz que temos paz se Cabo Delgado não tem paz e Cabo Delgado é Moçambique, é parte de Moçambique…

Portanto, em Moçambique não temos paz e eu sinto, com discursos desse tipo, uma falta de solidariedade para com o povo de Cabo Delgado e até certo ponto tenho o sentimento de que o assunto de Cabo Delgado pertence a Cabo Delgado e não a Moçambique. Mas há um despertar muito grande de consciências, de pessoas de boa vontade, de pessoas que têm sabedoria no país, de pessoas que pensam, que falam, que fazem ‘advocacy’ para que a guerra acabe e a paz seja verdadeiramente uma paz para todos os moçambicanos.”

A “MÃO AMIGA” DA FUNDAÇÃO AIS

D. António Juliasse, que tem sido uma das vozes mais activas na denúncia do terrorismo em Cabo Delgado, fez questão de sublinhar, uma vez mais, nestas declarações em Lisboa, o trabalho que a Igreja tem vindo a realizar junto das populações mais atingidas pela violência dos grupos armados que reivindicam pertencer ao Daesh, a organização jihadista Estado Islâmico. E lembra que toda essa ajuda só tem sido possível graças à solidariedade de instituições como a Fundação AIS.

Nós, como Igreja, continuamos a fazer o que é da nossa natureza, estar ao lado do povo, socorrer os que podemos socorrer, oferecendo as ajudas que também nos chegam, e muito recentemente essas ajudas estão a diminuir bastante, mas há sempre uma mão amiga e essa mão amiga, para nós, em Cabo Delgado é, largamente, aquela que vem da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, que sempre nos socorre e socorre nos momentos mais críticos, que está sempre pronta a dar-nos alguma coisa para nos sentirmos úteis porque assim podemos também salvar a vida dos nossos irmãos”, afirmou o Bispo de Pemba.

VISITA ‘AD LIMINA’ E O GESTO DO PAPA

Sobre a visita ‘ad limina’, que decorreu em Roma entre os dias 23 e 27 de Setembro, o prelado referiu que houve reuniões em “quase todos” os dicastérios e que houve um encontro na Secretaria de Estado, que coincidiu com a reunião, nesse dia, do Cardeal Parolin em Nova Iorque, na sede das Nações Unidas, onde a situação que se está a viver em Moçambique, em Cabo Delgado, foi levantada pelo responsável do Vaticano, o que, sublinhou D. Juliasse, foi “um momento bom”.

De todos os encontros, o Bispo de Pemba destacou, naturalmente, a reunião de 24 de Setembro com o Papa Francisco, que descreveu como tendo decorrido num ambiente muito familiar, em que o tema do terrorismo foi também abordado. O Santo Padre disse: ‘vamos estar como em África, em volta da fogueira, sem muitas formalidades’. E conversámos e ele confortou-nos bastante. Ouviu as nossas preocupações, as nossas partilhas, as nossas tristezas, também ouviu as nossas alegrias, naturalmente, mas depois as suas palavras foram todas no sentido de nos confortar, e de indicar, com palavras muito simples, alguns caminhos que a igreja em Moçambique pode percorrer para superar as dificuldades, inclusivamente a dificuldade da guerra em Cabo Delgado.”

No encontro, disse ainda D. António Juliasse à Fundação AIS, o Papa teve um gesto pessoal “muito importante neste momento.” “Um gesto concreto, uma pequena doação pessoal para concluirmos as obras do seminário de filosofia em Nampula, que é o segundo seminário de filosofia no país, e deu-nos, a partir desse gesto, a possibilidade de sonharmos com o segundo seminário de teologia.”

O GESTO MARAVILHOSO DE SÍLVIA

De passagem por Lisboa, após a visita ‘ad limina’ dos Bispos de Moçambique, D. António Juliasse fez questão de se encontrar pessoalmente com Sílvia Duarte, a cabeleireira portuguesa que protagonizou em Maio uma dura prova de atletismo, de 22 quilómetros, em que correu com as cores e a bandeira da Fundação AIS como gesto de solidariedade e de denúncia para a situação humanitária trágica que se vive em Cabo Delgado. Um gesto que D. Juliasse acompanhou de perto e que o comoveu bastante.

“Não foi tanto por aquilo que foi mobilizado em termos materiais, mas pela consciencialização que esta decisão pessoal de correr por Cabo Delgado possa ter criado na sociedade portuguesa e na Europa e isso comoveu-me bastante”, disse o prelado. “Comoveu-me ver que em terras distantes de Cabo Delgado há pessoas que não estão distantes daquilo que está por lá a acontecer e fazem gestos maravilhosos como o gesto da Sílvia. Eu, passando por Portugal, vim dar um abraço à Silvia para a encorajar para continuar com esse coração tão humano”, explicou D. António Juliasse. 

E Sílvia Duarte, que também se mostrou comovida neste encontro junto à Igreja de São Julião da Barra, em Oeiras, a sua paróquia, disse que até já está a preparar uma nova corrida solidária para com Moçambique. Vai ser já dia 12 de Outubro, em Abrantes, e, desta vez, prepara-se para percorrer 100 quilómetros em favor da Mary’s Meal, uma organização que promove a alimentação escolar de crianças neste país africano de língua oficial portuguesa.

Paulo Aido | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt

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