Dois sacerdotes, João de Deus e Sílvio Alves Moreira, foram assassinados a 30 de Outubro de 1985 durante a guerra civil em Moçambique, faz precisamente hoje 39 anos. São os Mártires de Chapotera. D. Diamantino Antunes, recorda para a Fundação AIS que eles, cujo processo de canonização está a decorrer, foram testemunhas da fé e caridade até ao último dia das suas vidas. Ambos são exemplo num país que atravessa de novo a chaga da violência, com o terrorismo em Cabo Delgado e agora com distúrbios graves após o último acto eleitoral, em Outubro, que, segundo a Igreja, ficou marcado por “fraudes grosseiras”.
Dia 30 de Outubro de 1985. Os padres Sílvio Alves Moreira, português, e João de Deus Kamtedza, moçambicano, ambos pertencentes à Companhia de Jesus, foram mortos por ódio à fé nesse dia em Chapotera, Missão de Lifidzi, situada na Diocese de Tete, em Moçambique.
Ambos estavam profundamente comprometidos no serviço às populações, mas também na denúncia das atrocidades que vinham sendo cometidas pelas autoridades durante a guerra civil, sendo por isso considerados como testemunhas incómodas. Foram assassinados, mas não esquecidos. O povo nunca deixou de os lembrar, nem a Igreja.
O processo de canonização de ambos os sacerdotes está em curso e o Bispo de Tete, que tem sido talvez o grande divulgador da história destes dois jesuítas, publicou inclusivamente um livro para dar a conhecer o que aconteceu nesse dia em que a terra moçambicana voltou a ser manchada de sangue. O livro procura dar a conhecer a vida e o testemunho de fé de ambos os sacerdotes assassinados durante a atribulada guerra civil em Moçambique, que teve início logo após a independência do país em 1975. “Fundamentalmente, o livro é para dar a conhecer à Igreja o testemunho de fé, de caridade e de coragem destes dois missionários que deram a vida em favor do povo de Deus na Diocese de Tete em 1985”, explica D. Diamantino Antunes à Fundação AIS.
Foram testemunhos de fé porque num momento difícil da história de Moçambique, de falta de liberdade religiosa e também de guerra de extrema violência, eles mantiveram-se nos seus lugares como bons pastores, defendendo a paz, defendendo as pessoas que foram vítimas da violência, e sobretudo testemunhando a força do Evangelho, que é um Evangelho de paz e de perdão.”
D. Diamantino Antunes
HISTÓRIAS QUE NÃO SE PODEM ESQUECER
Ao publicar o livro, D. Diamantino Antunes procurou dar a conhecer ao mundo a história destes dois jesuítas que no momento de maior perigo não recuaram e mantiveram-se firmes ao lado do povo, ao lado das suas comunidades, acabando por serem assassinados a 30 de Outubro de 1985.
“Da vida destes dois sacerdotes, o que destacarei mais é a fidelidade. Foram missionários que ficaram entre o povo sofrido, sofrendo com ele, Nesse aspecto são recordados como bons pastores”, explica o Bispo de Tete à Fundação AIS. “Podiam ter saído, podiam ter evitado a morte, bastava terem recuado, indo para um lugar mais seguro, ou então abdicar da sua profecia, mas eles, convencidos de que o pastor, o bom pastor, não abandona as ovelhas num momento de perigo, ficaram entre o povo de Deus na [região da] Angónia, e sofreram a morte por causa do seu testemunho, da sua palavra, da sua caridade, do seu exemplo.”
D. Diamantino Antunes termina dizendo que os dois sacerdotes “foram de facto testemunhas de muito sofrimento, denunciaram esse sofrimento, curaram as feridas, mas os filhos das trevas que não gostam dos filhos da luz, e decidiram eliminá-los”. “Mas essa luz nunca se apagou porque são recordados e amados e são para nós um exemplo de fé e de fidelidade”, concluiu.
O “PEQUENO MONSTRO” DO TERRORISMO
Infelizmente, Moçambique já viveu muitas guerras. A guerra civil, em que foram assassinados os dois sacerdotes jesuítas, começou pouco depois da independência do país face a Portugal e durou 16 anos, terminando apenas em 1992, com cerca de 1 milhão de mortos e após um processo negocial mediado pela Comunidade de Santo Egídio.
Mais recentemente, desde Outubro de 2017, a guerra regressou ao país, mais concretamente à região norte, com ataques terroristas por grupos armados que reivindicam pertencer ao Daesh, a organização jihadista Estado Islâmico. Estes ataques já provocaram mais de cinco mil mortos e cerca de 1 milhão de deslocados. Para D. Diamantino Antunes, esta insurgência “não foi tomada muito em consideração” no seu início. “Não se advertiu para a gravidade” do que estava a acontecer e isso, diz o prelado, terá ajudado a alimentar “este pequeno monstro” que, com o passar do tempo, “foi crescendo e hoje tem tentáculos muito fortes e presentes na província de Cabo Delgado”.
Para o Bispo, os ataques armados têm “afectado muito” esta região norte de Moçambique – também a mais pobre do país –, “porque tem produzido mortes, destruição e milhares e milhares de deslocados”. “E Moçambique é como um corpo. Quando num corpo um membro sofre, todo o corpo sofre. É evidente que o terrorismo afecta Moçambique porque afecta uma parte dos moçambicanos e sem dúvida também condiciona o desenvolvimento porque onde não há paz, onde não há segurança, não há investimento e as pessoas procuram evitar esses lugares”, acrescenta D. Diamantino Antunes.
“FRAUDES GROSSEIRAS” NAS ELEIÇÕES
Sinal da intranquilidade que se vive em Moçambique, o país tem assistido a diversos actos de violência após as eleições de 9 de Outubro, cujos resultados têm sido denunciados por diversos agentes políticos e pela própria Igreja Católica. Os bispos de Moçambique denunciaram mesmo “fraudes grosseiras” nas eleições, e condenaram o “bárbaro assassinato” de Elvino Dias e Paulo Guambe – dois dirigentes de um dos partidos da oposição – pedindo “coragem para o diálogo e para se repor a verdade dos factos”.
Num comunicado enviado para a Fundação AIS, os prelados dizem que, “infelizmente, mais uma vez, verificaram-se fraudes grosseiras” nas eleições. E concretizam. “Repetiram-se enchimentos de urnas, editais forjados e tantas outras formas de encobrir a verdade. As irregularidades e fraudes, a grosso modo impunemente praticadas, reforçaram a falta de confiança nos órgãos eleitorais, nos dirigentes que abdicam da sua dignidade e desprezam a verdade e o sentido de serviço que deveria nortear aqueles a quem o povo confia o seu voto. Desta forma, empurram o povo não só a comprovar as suas desconfianças, mas também a se questionar sobre a legitimidade dos eleitos”, afirma o episcopado moçambicano.
Um alerta que ganha um significado especial neste dia em que se assinala o martírio a 30 de Outubro de 1985 de dois sacerdotes durante os 15 anos e 11 meses que durou a guerra civil que ensanguentou e enlutou este país africano de língua oficial portuguesa.
Paulo Aido | Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt