“É horrível, e é o povo que mais sofre. A cidade está nas mãos de gangues. O povo está faminto, as escolas estão fechadas. Não há trabalho, os hospitais estão encerrados porque não têm combustível para os geradores. É impossível viver nestas circunstâncias.” As palavras são da Irmã Marcela Catozza, uma missionária italiana presente no Haiti desde 2006.
O país está a atravessar um período de forte turbulência política e social, especialmente desde o assassinato do presidente Jovenal Moïse, em Julho do ano passado, com o caos e a violência a tomaram conta das ruas, dos principais bairros das cidades, onde grupos armados, verdadeiros gangues, têm vindo a impor a lei do mais forte.
Neste contexto, como a Fundação AIS tem vindo a denunciar, ninguém está a salvo. Nem a Igreja. Num poderoso testemunho à jornalista Maria Lozano, directora de comunicação internacional da Fundação AIS, a religiosa, que pertence à Fraternidade Missionária Franciscana, faz o retrato de um país em implosão, onde nada funciona, onde a pobreza, que já é crónica, se agravou imenso nos últimos tempos.
“A Igreja também está a ser atacada”, diz, lembrando o assassinato de uma outra irmã, também italiana, Luisa del Orto, abatida a tiro no passado dia 25 de Junho. “Éramos muito, muito próximas. Quando me deram a notícia, caí de joelhos por terra… foi uma perda absolutamente terrível. Não sabemos por que razão foi morta. No início, foi-nos dito que foi uma tentativa de assalto, mas estou convencida de que alguém pagou para que ela fosse morta na rua. Foi verdadeiramente terrível”, diz.
Mas houve outros ataques contra a Igreja. Duas semanas depois de a Irmã del Orto ter sido baleada mortalmente numa rua da capital do Haiti, Port-au-Prince, o próprio edifício da Catedral foi tomado pelas labaredas. “Deitaram fogo à Catedral e tentaram matar os bombeiros que chegavam para apagar as chamas. Depois, tentaram ainda destruir as paredes da Catedral com um camião”, recorda a religiosa.
Mas houve outros ataques contra estruturas e instituições ligadas à Igreja Católica, como a Fundação AIS já revelou. “Em Port-de-Paix e em Les Cayes, e também noutras cidades, atacaram edifícios da Cáritas, levando tudo, incluindo toda a ajuda humanitária, e destruindo os escritórios do pessoal”, descreve a irmã que está, desde Agosto, em Itália e que aguarda pelo regresso ao Haiti.
Uma ausência que, neste contexto tão turbulento, deixa-a também inquieta. “É muito difícil para um missionário estar afastado da sua missão, é muito difícil… Mas tenho a certeza de que é isto que Deus me pede agora”, diz, explicando que dada a situação de enorme instabilidade que se vive no Haiti, foi-lhe pedido que, por prudência, aguardasse um pouco antes de efectuar a viagem de regresso a Port-au-Prince.
De facto, a sua própria missão, numa das favelas da capital, também não escapou à violência. “Há cerca de um mês atearam fogo à nossa capela. Tudo foi queimado. O altar, os bancos… Não sobrou nada. O Santíssimo Sacramento foi salvo porque o levo sempre para um lugar seguro quando parto”, esclareceu.
A favela onde está situada a missão católica era uma lixeira há cerca de 20 anos. Aí vivem agora cerca de 100 mil pessoas. É um dos bairros de lata da capital haitiana, onde as famílias moram em habitações muito precárias, sem água corrente ou electricidade.
Mas também aí, na própria favela, há sinais de violência, com os gangues a imporem a sua presença. “Durante o ano passado, não pude sair para ir à missa de manhã, porque os gangues fechavam o bairro de lata e ninguém podia entrar ou sair. Isto é muito difícil para mim, muito difícil”, disse ainda a Irmã Marcela Catozza à Fundação AIS.
Mas o pior de tudo é mesmo o alheamento do mundo face à tragédia em que o Haiti está mergulhado. “Parece que ninguém no mundo está interessado no que o Haiti está a passar. Claro que existem muitos outros problemas, especialmente na Europa, que está concentrada no que se passa na Ucrânia e na Rússia, e dominada pelo medo. Mas não se deve esquecer os outros lugares do mundo, como o Haiti, que têm vindo a suportar conflitos quase durante toda a sua existência”, diz a irmã, pedindo orações aos benfeitores da Fundação AIS. “Por favor, rezem pelo Haiti. Peçam ao Senhor que olhe por todos os haitianos, e que dê a paz ao seu povo…”