Pobreza, medo, violência. Muita violência. Quando se fala no Haiti é impossível não se usar estas palavras. Grupos armados impõem as suas leis especialmente na capital, mas todo o país está refém dos gangues. Só no primeiro fim-de-semana de Dezembro, cerca de 200 pessoas foram mortas num incidente. O Bispo de Fort Liberté denuncia esta situação e alerta, através da Fundação AIS, para o facto de a pobreza estar a crescer dramaticamente. “Mal se pode sobreviver”, diz D. Quesnel Alphonse.
“Se tivesse de escolher uma palavra para descrever esta situação, diria ‘asfixia’. É como se nos estivéssemos a afogar. Mal estamos a sobreviver. As coisas estão a tornar-se cada vez mais difíceis e não sabemos o que vai acontecer. A verdade é que sentimos que as pessoas se sentem muito perdidas.”
D. Quesnel Alphonse, Bispo de Fort Liberté
A situação parece claramente fora de controlo. Os incidentes sucedem-se e as notícias que chegam do país mostram que são os gangues armados que mandam na maior parte dos bairros da capital, a cidade de Port-au-Prince, como se não existisse polícia, nem exército nem autoridade do Estado. A violência descontrolada está a arrastar ainda mais a população para a pobreza. E D. Quesnel Alphonse fala mesmo em miséria. “As pessoas não são apenas pobres, estão agora a viver na miséria. Isto afecta todo o país. O desespero está no máximo, e quando isso acontece, tudo pode acontecer. É uma pena, especialmente com o Jubileu de 2025, um período que todos nós aguardávamos com esperança.”
A diocese de Fort Liberté fica no norte do país, numa zona afastada da capital. Mas as ondas de choque do que se passa em Port-au-Prince chegam a todo o lado. É por lá, pela capital e seus arredores que se concentram quase três milhões de habitantes. São os que vivem na grande cidade os que mais sentem, actualmente, as dificuldades deste país que está a colapsar. “Dos 12 milhões de habitantes do Haiti, cerca de 3 milhões estão em Port-au-Prince e arredores. Isso torna a miséria ainda maior. Para além da miséria, desenvolveu-se um fenómeno nos últimos três anos: o aparecimento de gangues. É terrível. É muito fácil para os grupos armados organizarem-se nesta cidade sobrelotada”, adverte o prelado.
FAMÍLIAS QUE NUMA NOITE PERDEM TUDO
Com a força das armas, estes grupos impõem as suas regras. E ninguém parece escapar a isso. “Os agricultores preferem levar os seus produtos para a capital, porque aí obtêm mais rendimentos, mas os gangues dificultam o transporte. Mas isso não é o pior. Há uma coisa que está sempre a acontecer: famílias que, numa noite, perdem tudo porque os bandos chegam ao seu bairro, levam tudo o que têm, ocupam a sua casa e obrigam-nas a sair”, explica o Bispo à Fundação AIS.
A somar a tudo isto há também o risco, sempre a crescer, de muitos jovens se sentirem de alguma forma aliciados por estes grupos e fazerem crescer ainda mais o mundo do crime no Haiti. Um aliciamento que também tem contornos religiosos… “Há casos conhecidos de muçulmanos que recrutam jovens pagando-lhes quase 100 dólares para se juntarem a eles. Embora o Islão seja uma religião minoritária no Haiti, a sua presença tem vindo a aumentar. É triste ver como estes jovens se alistam por necessidade e não por convicção. Muitos também acabam se juntando a gangues pelo mesmo motivo.”
A miséria, a falta de oportunidades e de expectativas ajuda a explicar a facilidade com que os jovens se deixam aliciar por estes gangues armados. “Ontem ouvi o testemunho de um jovem que aderiu a um gangue”, conta D. Alphonse. “Ele disse que era órfão, que não tinha ninguém e que, não tendo ninguém, a sua vida não fazia sentido. Os gangues dão um sentimento de pertença. É esse o perigo. Não se trata apenas de um problema económico, é um problema existencial. O fenómeno dos bandos [armados] é uma questão de sobrevivência. Em caso de necessidade extrema, as pessoas estão dispostas a tudo, até a matar. E depois há o fenómeno da droga. Sob o efeito da droga, e para a obter, muitos jovens estão dispostos a tudo. Perdem a sua humanidade e são capazes de tudo. Os jovens dos bairros mais desfavorecidos estão completamente perdidos”, afirma o Bispo de Fort Liberté.
A ESPERANÇA NO ANO JUBILAR
No entanto, apesar deste retrato tão sombrio, há alguns sinais de esperança. A começar no facto de este ser um ano jubilar… “Na Bula do Jubileu, o Papa aborda a questão dos migrantes, uma realidade que nos toca profundamente. Não só na diocese de Fort-Liberté, mas todos nós devemos reflectir sobre esta situação. Trata-se de um projecto que devemos levar a sério neste ano. E o Santo Padre falou também do perdão da dívida dos países pobres, e este Jubileu pode encher o Haiti de esperança”, disse o Bispo de Fort Liberté, que deixou uma palavra de agradecimento à Fundação AIS por toda a solidariedade para com o Haiti.
“Gostaria de aproveitar esta oportunidade para expressar a minha profunda gratidão aos benfeitores da Fundação AIS, cuja generosidade e apoio contínuo ao longo dos últimos anos têm sido cruciais neste momento tão difícil para o nosso país”, disse D. Quesnel Alphonse. As palavras desse prelado vêm dar força à mensagem enviada, no ano passado, para a Fundação AIS em Lisboa, da irmã Helena Queijo, uma religiosa portuguesa que está em missão no Haiti desde 2016.
Presente numa zona rural longe de Port-au-Prince, a Irmã Helena descreveu também uma realidade feita de pobreza, medo e onde a fome faz parte já da vida de muitas pessoas. “Cada dia, aumenta o número de pessoas que nos pedem ajuda, em alimentos ou para questões de saúde, mas, por vezes, não somos capazes de dar resposta a tantas solicitações. A nossa missão vive de pessoas amigas, familiares, pessoas generosas que todos os meses enviam uma pequena ajuda, que para nós é uma grande ajuda. Sem esse apoio, nós teríamos que fechar a missão”, diz a irmã referindo-se ao trabalho que as religiosas espiritanas estão a desenvolver na Montanha Lavoute, Diocese de Jacmel, no sudeste da ilha.
“AQUI FALTA DE TUDO…”, DIZ IRMÃ HELENA
Para a irmã, a luta, diária, é para conseguir alimentar todas estas crianças. Algo que, com a falta de recursos, se torna cada vez mais difícil. “Na escola primária, o grande desafio de cada dia é conseguir dar uma refeição quente a todas as crianças”, afirma a irmã, descrevendo um ambiente de grande pobreza. “Aqui, onde se encontra a missão, falta de tudo, desde infraestruturas básicas, como água, saneamento e energia. A maioria das pessoas vive em casa de madeira e telhados de zinco, muito frágeis e precárias. Aqui, dependemos da chuva para ter água. Quando chove, as pessoas podem guardar em bidões ou depósitos de plástico, por vezes a seca é grande e esta reserva é insuficiente, por vezes têm de fazer quilómetros para ir a uma nascente”, relata a Irmã Helena.
Tal como o Bispo de Fort Liberté, também a irmã Helena fez questão de agradecer toda a solidariedade que a Fundação AIS tem feito chegar ao Haiti. “Obrigada por todo o apoio que dão a todas as Igrejas do mundo inteiro, que Deus vos abençoe!”.
De facto, só no ano de 2024, a fundação pontifícia apoiou a Igreja no Haiti com cerca de 70 projectos. Em particular, a fundação apoiou estações de rádio diocesanas, projectos de painéis solares e a formação e apoio de padres, freiras e catequistas.
Paulo Aido e Lucía Ballester
Departamento de Informação da Fundação AIS | info@fundacao-ais.pt