MOÇAMBIQUE
Memórias de 7 anos de terror em Cabo Delgado
Parte 2
A região norte de Moçambique foi fustigada no domingo, 15 de Dezembro, por um ciclone que deixou um profundo rasto de destruição e morte. Para as populações locais, foi apenas mais uma desgraça a somar à tragédia que é viver numa região atormentada por terroristas que reclamam pertencer a organização jihadista Estado Islâmico. Desde 5 de Outubro de 2017 que é assim. Para que o mundo não se esqueça disso, a Fundação AIS reuniu memórias de algumas pessoas que vivenciaram toda esta violência, todo o terror e medo e também destruição causado por estes grupos armados
A Irmã Núbia, o Padre Fonseca ou Frei Boaventura são rostos da presença da Igreja na Diocese de Pemba. Todos eles, tal como o Padre Evaristo, da Cáritas de Nampula, conhecem as lágrimas de dor e de desespero das vítimas, dos homens, mulheres e crianças que viram os seus ente-queridos serem mortos, que tiveram de fugir, que perderam tudo o que tinham.
“Dói muito ver o sofrimento deste povo…”
Irmã Blanca Núbia Zapata Castaño
“Quando os chamados insurgentes aparecem nas aldeias, primeiro disparam para o ar, assim anunciando a sua chegada. As pessoas fogem imediatamente. Quem tiver a má sorte de ser apanhado, é morto ou raptado. No nosso caso, nas experiências de abandonar as nossas duas missões, seguimos o ritmo do povo. Afastámo-nos mal ouvimos que havia insurgentes por perto, por prudência e porque fomos alertadas para o perigo.”
De todos estes ataques, de toda esta violência, há memórias que não se conseguem esquecer. É o caso do assassinato, com um tiro na cabeça, da religiosa italiana Maria de Coppi, de 83 anos de idade. Foi em Setembro de 2022, na missão da Igreja Católica de Chipene, Diocese de Nacala. Além do assassinato da irmã, os terroristas destruíram praticamente tudo o que havia por lá, incendiando a igreja, a escola, o centro de saúde, as casas das religiosas e até as viaturas de apoio. A Irmã Núbia recorda agora para a Fundação AIS como foi particularmente dolorosa a notícia da morte da Irmã Maria de Coppi, nessa noite trágica de 6 para 7 de Setembro de 2022, fez agora dois anos…
“Doeu-me muito. Para os missionários, este acontecimento marcou um antes e um depois na nossa vida, dado que até 2022, nem mulheres, nem crianças, nem crentes de uma religião específica tinham sido alvo de mortes violentas, embora alguns sejam vítimas de rapto. Foi o que sucedeu com duas religiosas da nossa diocese, raptadas no ano de 2020, mas felizmente libertadas após 24 dias de cativeiro.
“Nos meus 19 anos em Cabo Delgado, nunca ouvira falar de confrontos religiosos. É difícil entender os motivos que levam alguém a aderir a este tipo de grupos, mas convém dizer que Cabo Delgado é uma província tradicionalmente esquecida pelos governos moçambicanos.
“Há muita pobreza, fraco desenvolvimento a todos os níveis e uma grande desigualdade, se compararmos com outras províncias no Centro e no Sul. Há muito desemprego e falta de horizontes para os jovens. Dói muito ver o sofrimento deste povo, com fome de pão e de água, sem um tecto digno onde se proteger do sol e da chuva, sem um pedaço de terra onde semear. Seja Deus a nossa luz, que apague toda a escuridão do pecado social que nos atinge.”
Dói muito ver o sofrimento deste povo, com fome de pão e de água, sem um tecto digno onde se proteger do sol e da chuva, sem um pedaço de terra onde semear.
Irmã Núbia
“O pior pesadelo é ver crianças raptadas…”
Padre Kwiriwi Fonseca
Sete anos de terror, sete anos de roubo de sonhos de inocentes, sete anos do desespero de um povo que viu os seus sonhos serem roubados. Desde 2017 que Cabo Delgado vive o horror da guerra. O pior pesadelo é ver crianças a serem raptadas, quer para serem submetidas aos adultos, como serem esposas, quer para serem obrigadas a levar as armas [dos terroristas]. Tudo isso, sem menosprezar também os adultos que sofrem, mas este pesadelo colocado no ombro de inocentes, tem sido um pesadelo também pessoal. Eu, que vi, na cidade de Pemba, muitas crianças separadas dos seus pais, eu que recebi relatos de muitas mães a chorar a perda dos seus filhos, de mães que viram serem arrancadas das suas mãos as suas crianças, que poderiam estudar, sonhar, tornarem-se gente importante na sociedade.
Este momento que nós estamos a assinalar, sete anos, sem muitas soluções, ainda sem percebermos se algo pode ser superado. O que nós apelamos é que haja seriedade para urgentemente se devolver a dignidade a estas pessoas, buscar-se caminho para se alcançar a paz e ser um momento em que as crianças começam a ser tratadas como dignas, como aquelas que vão garantir o bem da sociedade. Que esta guerra termine já. Que parem os raptos de crianças, que haja caminhos suficientes para que a dignidade humana seja respeitada e haja também a resposta para que a crise humanitária que se vive em Cabo Delgado seja respondida.
Vi, na cidade de Pemba, muitas crianças separadas dos seus pais; recebi relatos de muitas mães a chorar a perda dos seus filhos.
Padre Kwiriwi Fonseca
“Não há nada impossível para Deus…”
Frei Boaventura, pjc
Caríssimos, eu, Frei Boaventura do Instituto dos Pobres de Jesus Cristo, presente como missionário em Moçambique há quase oito anos, vindo de São Paulo, Brasil, venho por este meio partilhar um pouco do que foi e é conviver a cada dia com a guerra que se instalou em Cabo Delgado, de modo particular na zona Norte de Cabo Delgado e por onde passamos e que acompanhamos desde Abril de 2018 até Novembro de 2022.
Nestes quatro anos de vivência diária com as notícias do avanço do terrorismo no norte de Cabo Delgado, convivi todos os dias com a insegurança, vi pessoas a serem sacrificadas de modo tão terrível e cruel, acompanhei que a cada dia alcançavam mais territórios e, com isto, a destruição de aldeias, sonhos, paz e uma história de um povo que sempre sofre com as consequências das guerras no país. Fico até mesmo a imaginar que alguns idosos e mais velhos nunca conheceram o que é viver em paz com a sua família, e a imaginar que algumas crianças nasceram no mato com o sentimento de deslocamento e que vão seguir a sua vida com as marcas desta história.
Estes factos e sentimentos tomam sempre conta de muitos momentos quando paro e penso no povo com que convivi e até nos dias de hoje procuro ter contacto, e procuro, por meio da amizade, mostrar a minha solidariedade e a minha força para com cada um e, quando possível, o meu estender das mãos para ajudar alguns a terem um futuro melhor, pois durante estes quatro anos de vivência na província de Cabo Delgado pude viver também a experiência de tudo perder e por 3 vezes tudo recomeçar, com a esperança de que um dia poderia acordar e dormir sem pensar numa fuga que a qualquer momento poderia acontecer.
Hoje vivemos na cidade da Beira, pois após muitos momentos vividos, e vendo que chegávamos ao limite humano de lidar com estas situações e as suas consequências, pedimos para fazer esta nova experiência na Arquidiocese da Beira, mas sem perder o contacto e as possibilidades de abrir condições a alguns que solicitam.
O cântico de Jeremias 14, 17-21 exprime em palavras o que, como Igreja e como povo de Deus, vive o povo de Cabo Delgado:
“«Derramem os meus olhos lágrimas noite e dia, sem descanso porque a jovem, filha do meu povo, foi ferida com um golpe terrível, e sua chaga não tem cura!» | Se saio aos campos, eis os mortos à espada; se regresso à cidade, eis os dizimados pela fome. Até profetas e sacerdotes vagueiam pelo país, sem nada compreenderem. | Acaso, rejeitaste inteiramente Judá? Porventura, sentes nojo de Sião? Porque nos feriste sem esperança de cura? Esperávamos a paz, mas nada há de bom; esperávamos a hora do alívio, mas só vemos angústia! | Senhor! Conhecemos a nossa culpa e a iniquidade dos nossos pais. Pecámos realmente contra ti. Mas, por amor do teu nome, não nos abandones nem desonres o trono da tua glória. Lembra-te de nós, não anules a tua aliança connosco.”
Convivi todos os dias com a insegurança, vi pessoas a serem sacrificadas de modo tão terrível e cruel.
Frei Boaventura, pjc
Este cântico muitas vezes o rezava me colocava a meditar e para mim e por todas as experiências que vivi de deslocamentos, aldeias inteiras sem ter onde dormir e ficar, pais e mães separados, filhos sem saber por onde estão e se estão vivos, perda do pouco que se tinha, a fome, a falta de acesso a escolas e a saúde, perdas de vidas e de histórias, pessoas mais velhas, que impossibilitados de saírem às pressas, arriscavam a ficar dentro de suas casas e assim morriam de fome por não terem assistência de alguém e se vamos aos distritos e cidades encontrávamos casas cheias e o povo na luta para sobreviverem com os seus, pessoas as estradas com crianças e trouxas de roupas e utensílios a caminhar longas distâncias procurando um lugar para ficar, noites e noites a dormirem na mata em tempo de chuva, arriscando as suas próprias vidas para lutarem pela vida, mulheres que deram parto no exílio de um lugar para outro e tantas crianças e mulheres raptadas pelo grupo terrorista. Estes e tantos outros factos me fazem entrar dentro deste cântico e viver o que ele mesmo consegue expressar nas palavras.
Por isso, em todos estes momentos a única coisas que ninguém pode nos pode roubar é a fé e a esperança em Deus, porque mesmo em meio a tudo isso encontramos pessoas que passaram todos estes desafios mas que não deixaram a sua fé, o sentimento de comunidade e solidariedade uns para com os outros, o cuidado do povo com os sacerdotes, religiosos e religiosas, reconhecendo que neles podem encontrar a força de seguirem em frente, assim como também em ver a resiliência em tantos missionários que com a fé e a coragem se lançavam e permanecem ao lado do povo com as mãos estendidas.
Creio que é por este caminho que devemos percorrer, pois não há nada que seja impossível para Deus e não podemos colocar as nossas forças nos cavalos e nem nos cavaleiros e sim no Deus que tudo criou e é a origem de tudo.
Pela minha experiência e por meio destes quatro anos vividos e a conviver com a guerra e as suas trágicas consequências, digo que pela fé em Deus podemos superar os desafios. Hoje, estando numa nova missão em Moçambique, porque um dia também fomos chamados a fazer a experiência do recomeço, atesto que é pela fé e esperança no Senhor que podemos seguir em frente.
Com vivos sentimentos de fé e esperança, e acreditando que no sofrimento somos formados e forjados, é que peço a Deus o mesmo que pede o cântico de Jeremias: Não esqueçais Senhor a aliança que tendes com o vosso povo!
“Faltava tudo, comida, abrigos…”
Pe. Evaristo Jaime Moreriua
O conflito armado de Cabo Delgado que eclodiu em Outubro de 2017 e expôs milhares de pessoas à vulnerabilidade e à condição de deslocados internos. Dados da ACNUR estimam em 1.028.743 pessoas deslocadas, 70% nas comunidades de acolhimento, 836 crianças não acompanhadas, 15% de portadoras de deficiências e 352.437 deslocados retornados espontaneamente.
A província de Nampula recebeu segundo estimativas da OIM, até Novembro de 2022, cerca de 89.016 pessoas deslocadas. Dados do INGD, até 30 de Novembro de 2022, o centro de deslocados internos de Corrane tinha registado 77.237 deslocados internos, sendo 53% mulheres e 47% homens. Restantes pessoas deslocadas encontraram acolhimento em comunidades locais com limitado acesso a serviços das ONG e agências de desenvolvimento.
A Caritas Arquidiocesana de Nampula é uma instituição de caridade da Igreja Católica legalizada em 2011. Faz parte do movimento global da Igreja Católica a Caritas Internationalis e a nível nacional da Caritas moçambicana.
Deste o início da chegada dos deslocados internos a Igreja local esteve presente junto do Governo do Distrito de Meconta na oração e assistência humanitaria aos deslocados internos de Cabo Delgado. D. Inácio Saure, Arcebispo de Nampula, tem exaltado essa resposta da caridade local nos seguintes termos:
“No âmbito da assistência aos deslocados de guerra de Cabo Delgado, temos a assinalar, e com muita gratidão, a solidariedade manifestada por muitos fiéis católicos e pessoas de boa vontade que, logo nos primeiros momentos de chegada daqueles nossos irmãos a Nampula, ofereceram prontamente, mesmo na sua indigência, um significativo apoio material que permitiu a Caritas Arquidiocesana iniciar imediatamente o seu trabalho de apoio aos deslocados, sem esperar pelo apoio externo, que no principio nem se sabia se viria”.
Na assistência humanitária aos deslocados de Cabo Delgado acolhidos no centro de Reassentamento de Corrane e nalgumas comunidades de referência foram assistidos com programas de 1. Acesso universal de kits de alimentos; 2. Acesso a abrigos as famílias mais necessitadas; 3. Acesso a medicamentos no Centro de saúde de Corrane; 4. Acesso a produtos agrícolas entre sementes e ferramentas.
A assistência humanitária de emergência às populações deslocadas foi marcada por dificuldades, como as que seguem:
Fluxo continuo de deslocados internos quando não havia estrutura para a sua recepção. Não tinha precedente de acolhimento de inúmeras pessoas, quer nas práticas hospedeiras das culturas locais, nem nas comunidades paroquiais. Faltava tudo: cobertura, comida, abrigo para tanta gente. Muitas pessoas deslocadas ficaram sem a assistência adequada vivendo nas comunidades de acolhimento e por vezes na mata.
Muitas pessoas deslocadas ficaram sem a assistência adequada vivendo nas comunidades de acolhimento e por vezes na mata.
Padre Evaristo Moreriua
Limitados recursos para acolhimento e serviço: o trabalho iniciado com iniciativas locais, cedo se confrontou com limitações de resposta dos cristãos e das pessoas de boa vontade. Mesmo o apoio dos parceiros externos sempre se mostrou insuficiente.
Infraestruturas precárias: a transitablidade de estradas é limitada à época seca; em tempo chuvoso são inúmeros os desafios para chegar aos locais de acolhimento e oferecer a assistência requerida. Tivemos carros carregados de alimentos que não podiam chegar a Corrane porque ficaram enterrados na lama das estradas; tivemos carros com materiais de construção que ficaram enterrados e material a ser transbordado para libertar a viatura.
Financiamento das actividades da Caritas limitado à resposta dos parceiros. Foi e é difícil o exercício de mobilização de recursos e financiamento para as actividades. O que foi possível mobilizar sempre foi limitado às necessidades das pessoas assistidas.
Condições climáticas adversas: a estação chuvosa tem sido muito agreste. O país sofre os efeitos de ciclos de ventos fortes e ciclones anualmente que destroem as vias de acesso (estradas e pontes), as habitações e as machambas das populações.