MOÇAMBIQUE
Memórias de 7 anos de terror em Cabo Delgado
Parte 1
A região norte de Moçambique foi fustigada no domingo, 15 de Dezembro, por um ciclone que deixou um profundo rasto de destruição e morte. Para as populações locais, foi apenas mais uma desgraça a somar à tragédia que é viver numa região atormentada por terroristas que reclamam pertencer a organização jihadista Estado Islâmico. Desde 5 de Outubro de 2017 que é assim. Para que o mundo não se esqueça disso, a Fundação AIS reuniu memórias de algumas pessoas que vivenciaram toda esta violência, todo o terror e medo e também destruição causado por estes grupos armados
Fátima Castro é uma jovem missionária leiga de Braga que esteve desde 2021 até muito recentemente em Ocua, na Paróquia de Santa Cecília, na Diocese de Pemba. Tal como ela, também o padre Eduardo Roca de Oliveira, que está em Mahate, o bairro que é o coração do Islão na cidade de Pemba, aceitou partilhar com a Fundação AIS as suas memórias destes anos de violência, dor e morte.
“Vi rostos de fome, mãos cheias de nada…”
Fátima Castro
Eram dez horas, numa manhã quente de Fevereiro. O enfermeiro Ofélio, do posto de saúde, diz-nos para fugirmos porque “eles estavam a chegar”. Todos sabíamos quem “eles” eram. Nos últimos dias escutávamos os seus movimentos e percebíamos que um grupo de insurgentes estava cada vez mais perto de Mahipa, aldeia onde se situa a sede da missão. Dizem os mais velhos que, na Guerra Civil Moçambicana (também conhecida pela Guerra dos 16 Anos), ninguém entrou. Acreditava eu (e eles) que, nesta guerra sem nome e sem anos, desta vez não seria diferente. Em 2022 já havia testemunhado o terror deixado aquando da sua passagem em algumas das nossas aldeias mais distantes da sede da paróquia. Numa outra ocasião, num troço de caminho para Pemba – ladeado por matas – fomos abordados por alguns elementos deste grupo mas, por graça divina, não nos fizeram mal.
Volto a Fevereiro de 2024. Seria possível chegarem a Ocua? Na dúvida, o melhor era afastar. Essa era a regra. Quando saímos, já eles tinham entrado e, contam-nos mais tarde, que um dos alvos era a missão. Cercaram a aldeia, vindos de vários sítios e, tal como em 2022, voltaram a queimar capelas, um camião, extorquiram dinheiro, decapitaram pessoas… Os dias seguintes foram de silêncio e dor. Nós, os missionários, fomos acolhidos no Paço Episcopal da Diocese de Pemba. Mas sentimos que aquele não era o nosso lugar. Precisávamos de estar perto do nosso povo e, após autorização do Bispo, passámos em casa seis dias depois do ataque, antes de seguirmos caminho para Namapa (Província de Nampula).
Cercaram a aldeia, vindos de vários sítios e, tal como em 2022, voltaram a queimar capelas, um camião, extorquiram dinheiro, decapitaram pessoas...
Fátima Castro
Nesse dia, saímos cedo. Tínhamos pela frente três horas de estrada e uma incerteza do que iríamos encontrar. O silêncio foi maior do que as palavras. Quando chegamos ao mítico sinal onde diz “Missão de Ocua” o coração acelerou! Ao fundo, os enormes carros e os militares toldavam a vista para a igreja. Impossível de os contabilizar. No cajueiro – “sala de espera” daqueles que diariamente nos procuram – estava o chefe da aldeia e o comandante da Força Militar do Ruanda. Depois de uma breve explicação dos acontecimentos perguntou se podiam continuar a usar o terreno da missão. Saiu um “claro que sim” … mas o meu coração gritava que não. Que aquele espaço tinha dois “campos de futebol” onde, todos os finais de tarde, os jovens e as crianças faziam grandes torneios e – eles também não sabiam – mas por baixo do tamarindo tem uma oficina de artes em matope quando chove e uma pista de corridas de aros de bicicletas e carrinhos feito de canas de bambu. Estavam a ocupar o espaço das nossas crianças…
Uma hora depois, seguimos para Namapa, a vila que acolheu a maioria do nosso povo e que também nos acolheu quase três meses. Também fomos deslocados! E, assim que lá cheguei, percebi que a Via Sacra daquele povo ainda estava na primeira estação!
Naqueles dias que se seguiram, vi o movimento simultâneo de milhares de pessoas que, numa viagem sem destino, seguravam a mão dos mais pequenos e, na cabeça, carregavam os seus poucos pertences. Vi rostos com fome, enfermidades… e presenciei o desalento dos que pediam para ser acolhidos e daqueles que acolhiam com o coração, mas muitas vezes, com umas mãos cheias de nada. Conheci crianças que nasceram pelo caminho e abracei famílias que choravam o desaparecimento de outras. Senti neles o medo e a insegurança e contemplei a personificação da dor e do sofrimento. Fixei os rostos e os nomes que esta guerra feriu. A pastoral passou a ser a do “sofrimento”, da presença, da escuta… do “estamos aqui”! Fomos doando o pouco que tínhamos, mas, mais importante… fomo-nos doando.
Um mês depois regressámos a casa (apenas durante o dia) e, por breves momentos, tudo parecia que tinha voltado à normalidade. Só que não. Não havia crianças a brincar nem famílias no posto de saúde. O Joanito, de 4 anos, nunca mais veio pedir a bola, uma bolacha ou o “xumo” (sumo)!… A aldeia continuou em silêncio e a chorar os seus.
“O medo diminui quando o amor cresce…”
Padre Eduardo Roca de Oliveira
Dói a um pai quando um filho se desvia, quando faz algo de errado ou quando, por causa da sua teimosia, o vê entrar em becos sem saída e não consegue dissuadi-lo de o fazer. O nosso amor de sacerdotes amadurece, se deixarmos que o Espírito, no cadinho da oração, nos aproxime cada dia um pouco mais do Amor que é Deus Pai. Tornamo-nos semelhantes a Ele, nessa criação permanente que é a obra da nossa vida…. E é assim que o Seu Amor acaba por absorver o nosso…
Às vezes penso na dor de Deus por causa de tanto mal, e sinto uma dor tão intensa quando o mal é infligido aos últimos, àqueles que têm um rosto para mim, e então tenho medo de contemplar o Deus crucificado.
Lembro-me de olhar de fora e sentir tristeza, medo e profunda indignação perante os crimes e o terror que ouvia dizer que estavam a cometer. Sem conhecer o Islão, acreditava e repetia o mesmo que tantas pessoas que ouvem as mesmas notícias tendenciosas do exterior.
Ao longo dos anos, no meio de um bairro muçulmano com uma identidade muito fundamentalista, construímos uma igreja que hoje é um testemunho de paz e acolhimento para todos. Tenho consciência de que só com o apreço da comunidade do bairro o conseguimos fazer, algo que, pela minha parte, significou ser paciente, acompanhar em silêncio, ouvir e aprender como na escola, conhecer os valores profundos das diferentes culturas e do Islão, e ir um passo mais além: amá-los.
Com o tempo, acontece que o nosso coração fica no sítio para onde vamos… E muitas das coisas a que dávamos importância deixam de o ser, para o mais simples e mais humano ao mesmo tempo.
Ao longo dos anos, no meio de um bairro muçulmano com uma identidade muito fundamentalista, construímos uma igreja que hoje é um testemunho de paz e acolhimento para todos.
Padre Eduardo Roca de Oliveira
Os teus amigos são amigos por várias razões, mas a mais importante é muito simples, é pelo facto de se terem cruzado no teu caminho na vida e sem te aperceberes lhes teres deixado um gesto de carinho.
Para algumas pessoas, um pequeno gesto pode mudar tudo, e aqui, entre os Africanos, criam-se alianças que já não podem ser destruídas, sem nos apercebermos disso. Tudo o que está por detrás é proximidade, proximidade e confiança, é o acto de acreditar nas pessoas, e fazê-lo sem contrapartidas, com um pouco do amor incondicional que Deus tem por cada um de nós. Isso deixa a sua marca, e nunca mais se é o mesmo.
Quando olho hoje para a dor que os ataques terroristas continuam a causar, já não sou a mesma pessoa. Conheci e amei estes jovens que estão perdidos, desorientados, com as suas feridas e frustrações, num mundo que não tem lugar para eles. Sinto-me como um pai que não sabe o que fazer e que está profundamente magoado pelo facto de os seus filhos terem sido arrastados para um beco de violência e de morte. Não sou capaz de os julgar nem de os condenar, e choca-me que algumas pessoas no poder peçam a sua eliminação…
Ao longo dos anos, tive a oportunidade de falar com alguns dos jovens líderes dos terroristas. Não existe maldade pura nas pessoas, há sempre feridas que explicam os gritos de um jovem sem esperança, mesmo que os seus gritos sejam violentos. É por isso que, tal como o pai, espero em silêncio e rezo para que o amor puro de Deus cure os seus corações feridos e lhes devolva a paz.
Ao longo dos anos, apercebi-me de que a violência é uma possibilidade para todos. Só a experiência profunda de se sentir amado a pode conter. Mas, além disso, só a experiência de um amor em que se pode acreditar, que ama incondicionalmente e que ama ainda mais quando o mal se manifesta, só este tipo de amor, satisfaz a alma….
Quem é privado desta experiência não tem nada que o proteja da violência, da violência que vem dele para os outros, ou da violência que os outros lhe respondem.
É por isso que não sei o que se pode fazer para parar estes jovens transformados pelo ódio, senão tentar amá-los num silêncio paciente… Tentar compreender o que é incompreensível, o que pode levar alguém a perder a vida, e fazer o que puder para impedir que isso aconteça. Quando o ramo da árvore foi cortado, é importante lembrar que nada o fará voltar, e que o ódio ou a vingança só aprofundam o vazio…
Há alguns dias, celebrámos três ordenações de sacerdotes na Diocese de Pemba. Nos doze anos em que sirvo esta Igreja, nunca tivemos uma resposta tão clara de Deus. Depois das orações e petições destes anos, Deus responde com três jovens com esperança. Não podia ser mais eloquente…. Não se pode gritar mais alto que Deus vem realmente salvar o seu povo.
Às vezes perguntam-me se tenho medo. Eu digo-lhes que sim, mas um pouco menos. O medo diminui quando o amor cresce, e vice-versa. Depois, sem o esperarmos, alguém vem dizer-nos que toda a sua desolação acabou de repente, quando viu o seu ente querido sorrir à luz de Deus. Então, certamente, há uma razão para confiar, para adorar e para esperar, o que pode fazer com que tudo valha a pena.
E é então que o medo desaparece, sem se saber como.
Sete anos se passaram, mas os jovens da floresta, armados e violentos, continuam a semear a dor. Agora sei que é apenas um reflexo da dor que eles não querem sentir e que lhes aperta a alma.
A nossa igreja está agora de pé, à espera, como a mãe esteve de pé enquanto o Filho morria. De pé. Esta é a nossa resposta à violência, ficar de pé. Porque ninguém pode tirar de uma mãe a fé que moverá a laje da sepultura onde jaz o seu filho.
Ninguém pode mais trancar a história que continua a caminhar firmemente em direcção à luz sem ocaso.