MOÇAMBIQUE: Memórias de 7 anos de terror em Cabo Delgado

DOSSIER ESPECIAL - MOÇAMBIQUE

“Queimaram a capela, decapitaram pessoas”

Memórias de 7 anos de terror em Cabo Delgado

Sete anos depois dos primeiros ataques, a 5 de Outubro de 2017 em Mocímboa da Praia, não se sabe como nem quando vai terminar a violência terrorista em Moçambique. Desde então e até hoje já foram mortas mais de cinco mil pessoas e haverá mais de 1 milhão de deslocados. Durante estes sete anos, a Igreja tem sido uma presença constante junto destas vítimas, muitas vezes mesmo a única presença amiga e solidária. Para assinalar estes anos de terror, vários sacerdotes e religiosas aceitaram contar as suas memórias para a Fundação AIS.

TEXTO: PAULO AIDO

Fevereiro de 2024. Fátima Castro, uma jovem missionária leiga de Braga, está em Ocua, na Paróquia de Santa Cecília, um ponto quase imperceptível no mapa. Esta jovem portuguesa está em Moçambique desde Agosto de 2021 ao abrigo de um projecto de cooperação entre a Arquidiocese de Braga e a Diocese de Pemba. É o projecto Salama.

A paróquia de Ocua é um mundo à parte. São 98 comunidades, algumas bem distantes, onde só se chega por verdadeiras picadas que põem à prova a resistência das pessoe dos automóveis. Mas os que vivem por ali não têm carro, nem electricidade, nem água canalizada.

A pobreza está presente em todo o lado, em todos os rostos. Em Fevereiro deste ano, cresciam os rumores, em Ocua, de que os terroristas estariam uma vez mais por perto. “Eram dez horas, numa manhã quente. O enfermeiro Ofélio, do Posto de Saúde, diz-nos para fugirmos porque ‘eles estavam a chegar’. Todos sabíamos quem ‘eles’ eram. Nos últimos dias escutávamos os seus movimentos e percebíamos que um grupo de insurgentes estava cada vez mais perto de Mahipa, aldeia onde se situa a sede da missão.”

É assim que começa o testemunho que Fátima Castro enviou para a Fundação AIS sobre as suas próprias memórias, sobre como é viver num território ensombrado pela violência terrorista. 

“Cercaram a aldeia, vindos de vários sítios e, tal como em 2022, voltaram a queimar capelas, um camião, extorquiram dinheiro, decapitaram pessoas… Os dias seguintes foram de silêncio e dor.”

FÁTIMA CASTRO, a jovem missionária de Braga, está a referir-se ao ataque que ocorreu em Fevereiro na zona de Ocua onde está situada uma das missões da Igreja Católica na província de Cabo Delgado. Mas o primeiro ataque de todos, o ataque que marcou o arranque da insurgência em Moçambique, aconteceu bem longe dali, em Mocímboa da Praia, a 5 de Outubro de 2017.

O primeiro ataque

Cerca de 30 homens “fortemente armados” invadiram nesse dia 5 de Outubro de 2017 o posto policial e deixaram atrás de si cinco mortos. Os relatos da imprensa na época revelam a estranheza do incidente. Numas notícias refere-se que os atacantes eram homens mascarados com “vestes árabes”, noutras que vinham munidos de catanas e armas de fogo. Todas descrevem um ataque ousado contra as forças policiais. Foi o primeiro ataque.
Desde então, já se perderam a conta aos incidentes, alguns de enorme gravidade, como aconteceu em Maio deste ano com um ataque protagonizado por cerca de uma centena de “insurgentes”, como os terroristas são também chamados localmente, à vila de Macomia. Foi nos dias 10 e 11 de Maio. Antes, em Fevereiro, não só a aldeia de Ocua foi alvo dos terroristas. Também cerca de uma dezena de aldeias no distrito de Chiúre conheceram a violência destes homens armados que reivindicam pertencer ao grupo jihadista Estado Islâmico.
Nessa ocasião, como salientou o Bispo de Pemba numa mensagem enviada para a Fundação AIS em Lisboa, “todas as capelas cristãs foram destruídas”. Nessa mensagem, D. António Juliasse – que tem sido uma das vozes mais activas da Igreja Católica na denúncia do que se passa em Cabo Delgado – advertia para as consequências dramáticas da violência terrorista na vida das pessoas. “Não tarda que chegue a fome, a sede e as doenças”, afirmou, alertando que, no entanto, “o risco maior é de serem rostos esquecidos em função de outras guerras no mundo”.

Um povo em constante via-sacra

Voltemos a Fevereiro de 2024. Voltemos ao relato da missionária Fátima Castro. Os terroristas aproximavam-se de Ocua. Não era a primeira vez que esta jovem portuguesa estava numa zona ameaçada.Em 2022 já havia testemunhado o terror deixado aquando da sua passagem em algumas das nossas aldeias mais distantes da sede da paróquia. Numa outra ocasião, num troço de caminho para Pemba – ladeado por matas – fomos abordados por alguns elementos deste grupo, mas, por graça divina, não nos fizeram mal”, recorda à Fundação AIS. Desta vez, em Fevereiro deste ano, face aos rumores crescentes da presença de terroristas, e por precaução, os missionários abandonaram a região. “Essa era a regra.” Fizeram-se à estrada rumo à cidade de Pemba. Foram todos acolhidos no Paço Episcopal. “Mas sentimos que aquele não era o nosso lugar, precisávamos de estar perto do nosso povo e, após autorização do Bispo, seguimos caminho”, recorda Fátima.

Tinham passado já seis dias. “Saímos cedo. Tínhamos pela frente três horas de estrada e uma incerteza do que iriamos encontrar. O silêncio foi maior do que as palavras. Quando chegamos ao mítico sinal onde diz “Missão de Ocua” o coração acelerou! Ao fundo, os enormes carros e os militares, toldavam a vista para a Igreja. Impossível de os contabilizar.” A presença dos soldados era sinal de que já não havia terroristas por ali. “Uma hora depois, seguimos para Namapa, a vila que acolheu a maioria do nosso povo e que também nos acolheu quase três meses. Também fomos deslocados! E, assim que lá cheguei, percebi que a via-sacra daquele povo ainda estava na primeira estação!”

Idosos sem paz, crianças sem futuro

Tal como a portuguesa Fátima Castro, também Frei Boaventura é um estrangeiro enamorado pelas terras moçambicanas. Boaventura é missionário do Instituto dos Pobres de Jesus Cristo. Brasileiro, veio de São Paulo, está em Moçambique e nos últimos quatro anos aprendeu a conviver também com o avanço do terrorismo e com o que isso representa para as populações.

“Vi pessoas a serem sacrificadas de modo terrível e cruel, a destruição de aldeias e de sonhos, a história de um povo que sempre sofre com as consequências da guerra.” Foram anos de convívio diário com muitas pessoas, muitos idosos que “nunca conheceram o que é viver em paz” e muitas crianças que “nasceram no mato com o sentimento de deslocamento e que vão seguir a sua vida com as marcas desta história”. Uma história que, em Cabo Delgado, é feita de violência, medo e morte.

Frei Boaventura está hoje na cidade da Beira, mas não se consegue apartar das memórias que carrega consigo dos dias, dos longos dias e meses e anos em que esteve ao lado das populações ameaçadas e em fuga, dos que choram ainda a perda de familiares e amigos, dos que, de um dia para o outro, ficaram sem nada, de mãos ainda mais vazias. Muitas vezes, ao longo destes anos, este missionário deu por si a rezar com as palavras em que Jeremias [capítulo 14, 17.21] fala das “lágrimas sem fim” de um povo que morre à espada ou que é vítima da fome. “Este cântico, que muitas vezes rezava, colocava-me a meditar em todas as experiências que vivi de deslocamentos, de pessoas de aldeias inteiras sem terem onde dormir e ficar, de pais e mães separados, de filhos sem saber por onde estão e se estão vivos, da perda do pouco que se tinha, da fome, da falta de acesso a escolas e a saúde, das perdas de vidas e de histórias de pessoas mais velhas que impossibilitadas de saírem à pressa arriscavam ficar dentro de suas casas e assim morriam de fome por não terem a assistência de ninguém…”

"Vi pessoas a serem sacrificadas de modo terrível e cruel, a destruição de aldeias e de sonhos, a história de um povo que sempre sofre com as consequências da guerra."

Fome de pão, de água, de tecto

Frei Boaventura fala de um povo que perdeu tudo mas sabe que, mesmo na maior das indigências, há sempre algo de precioso que ninguém pode roubar: “a fé e a esperança em Deus”. Uma fé e uma esperança que também alimentam a vida da Irmã Núbia Zapata Castaño. Esta religiosa colombiana pertence à Congregação das Carmelitas Teresas de São José, e ela própria é uma deslocada interna. No ano de 2020, os terroristas chegaram à vila de Macomia, onde a irmã se encontrava a desenvolver um projecto de educação para centenas de jovens, rapazes e raparigas, apostando muito no desenvolvimento também do espírito ecológico, inspirado na encíclica do papa Francisco ‘Laudato Si’, nomeadamente a plantação de 20 mil árvores. A ameaça terrorista levou a irmã e as outras religiosas a mudarem-se para Metoro, no distrito de Ancuabe. Mas a violência terrorista chegou também aí, dois anos mais tarde, levando-as até Pemba, a cidade capital da província de Cabo Delgado. Agora, a irmã recorda para a Fundação AIS alguns dos momentos mais intensos que viveu face sempre à iminência da chegada dos homens de negro, dos jihadistas do Estado Islâmico. “Quando os chamados insurgentes aparecem nas aldeias, primeiro disparam para o ar, assim anunciando a sua chegada. As pessoas fogem imediatamente. Quem tiver a má sorte de ser apanhado, é morto ou raptado. No nosso caso, nas experiências de abandonar as nossas duas missões, seguimos o ritmo do povo. Afastámo-nos mal ouvimos que havia insurgentes por perto, por prudência e porque fomos alertadas para o perigo.” 

Mas ao longo de todos estes anos, há um episódio que a irmã Núbia não consegue esquecer: o assassinato a tiro da Irmã Maria de Coppi, uma religiosa italiana em missão em Chipene, na Diocese de Nacala, na noite de 6 para 7 de Setembro de 2022, fez agora dois anos… “Doeu-me muito. Para os missionários, este acontecimento marcou um antes e um depois na nossa vida, dado que até 2022, nem mulheres, nem crianças, nem crentes de uma religião específica tinham sido alvo de mortes violentas, embora alguns sejam vítimas de rapto”, explica, acrescentando que, ao longo das quase duas décadas de vida em Cabo Delgado, nunca ouvira falar em confrontos religiosos. Mas outras razões ajudarão a explicar a insurgência terrorista. “É difícil entender os motivos que levam alguém a aderir a este tipo de grupos, mas convém dizer que Cabo Delgado é uma província tradicionalmente esquecida pelos governos moçambicanos. Há muita pobreza, fraco desenvolvimento a todos os níveis e uma grande desigualdade, se com pararmos com outras províncias no Centro e no Sul. Há muito desemprego e falta de horizontes para os jovens. Dói muito ver o sofrimento deste povo, com fome de pão e de água, sem um tecto digno onde se proteger do sol e da chuva, sem um pedaço de terra onde semear.”

Gritos de jovens sem esperança

O padre espanhol Eduardo Roca está no ‘furacão’, digamos assim, da insurgência jihadista em Cabo Delgado. O bairro de Mahate, que é também a sua paróquia, é o coração do Islão na cidade de Pemba e é também o retrato da pobreza da cidade, da região. O Padre Eduardo tem, ao longo dos últimos anos, desenvolvido um trabalho notável na promoção do diálogo inter-religioso, talvez a ferramenta mais importante para se quebrar desconfianças, para impedir a proliferação de uma linguagem radical que justifique a violência das armas.

“Ao longo dos anos, no meio de um bairro muçulmano com uma identidade muito fundamentalista, construímos uma igreja que hoje é um testemunho de paz e acolhimento para todos. Tenho consciência de que só com o apreço da comunidade do bairro o conseguimos fazer, algo que, pela minha parte, significou ser paciente, acompanhar em silêncio, ouvir e aprender como na escola, conhecer os valores profundos das diferentes culturas e do Islão, e ir um passo mais além, amá-los”, diz o sacerdote na mensagem enviada para a Fundação AIS como testemunho pessoal sobre estes sete anos de insurgência jihadista que não deixam ninguém indiferente.

“Quando olho hoje para a dor que os ataques terroristas continuam a causar, já não sou a mesma pessoa. Conheci e amei estes jovens que estão perdidos, desorientados, com as suas feridas e frustrações, num mundo que não tem lugar para eles. Sinto-me como um pai que não sabe o que fazer e que está profundamente magoado pelo facto de os seus filhos terem sido arrastados para um beco de violência e de morte. Não sou capaz de os julgar nem de os condenar, e choca-me que algumas pessoas no poder peçam a sua eliminação…”, escreve o sacerdote espanhol cuja paróquia, no bairro de Mahate, é um símbolo de paz numa região marcada pela guerra.”

Ao longo dos anos, tive a oportunidade de falar com alguns dos jovens líderes dos terroristas. Não existe maldade pura nas pessoas, há sempre feridas que explicam os gritos de um jovem sem esperança, mesmo que os seus gritos sejam violentos. É por isso que, tal como o pai, espero em silêncio e rezo para que o amor puro de Deus cure os seus corações feridos e lhes devolva a paz”

Faltava tudo, desde comida a abrigos

Os ataques terroristas mataram já mais de 5 mil pessoas e causaram também mais de 1 milhão de deslocados internos. Muitos deles foram parar à Diocese de Nampula, fugindo do medo, da morte, da violência em Cabo Delgado. Muitos foram acolhidos no Campo de Reassentamento de Corrane, que a Fundação AIS já visitou, e onde é possível verificar o apoio que é prestado pela Igreja, nomeadamente pela Cáritas diocesana. O Padre Evaristo Moreriua é o director desta estrutura da Arquidiocese e descreve como este trabalho é difícil até pelo estado impróprio das estradas. A assistência humanitária de emergência às populações deslocadas foi marcada por dificuldades”, explica o sacerdote, lembrando que a “transitabilidade de estradas é limitada a época seca, pois em tempo chuvoso são inúmeros os desafios para chegar aos locais de acolhimento e oferecer a assistência requerida”. “Tivemos carros carregados de alimentos que não podiam chegar a Corrane porque ficaram enterrados na lama das estradas; tivemos carros com materiais de construção que foram enterrados e material a ser transbordado para libertar a viatura”, descreve o padre Evaristo. O acolhimento dos deslocados apanhou, numa primeira fase, a própria Cáritas sem recursos nem experiência para a dimensão do que a esperava. “Não tinha precedente o acolhimento de inúmeras pessoas quer nas práticas hospedeiras das culturas locais nem nas comunidades paroquiais. Faltava tudo: desde cobertura a comida, abrigo para tanta gente. Muitas pessoas deslocadas ficaram sem a assistência adequada vivendo nas comunidades de acolhimento e por vezes na mata”, acrescenta o sacerdote na mensagem enviada para a Fundação AIS.

O pesadelo de ver crianças raptadas

Ao longo destes sete anos, o Padre Kiriwi Fonseca, que foi responsável de comunicação da Diocese de Pemba, já se emocionou muitas vezes. E não consegue esquecer os rostos, os nomes, as histórias das crianças cujas vidas foram roubadas pelos insurgentes, crianças raptadas, meninas violentadas, rapazes forçados a carregar armas, a entrar até em combates. “O pior pesadelo é ver crianças a serem raptadas, quer para serem submetidas aos adultos, para serem esposas, quer para serem obrigadas a levar as armas [dos terroristas]. Tudo isso, sem menosprezar também os adultos que sofrem, tem sido um pesadelo também pessoal. Eu que vi, na cidade de Pemba, muitas crianças separadas dos seus pais, eu que recebi relatos de muitas mães chorando pela perda dos seus filhos, de mães que viram serem arrancadas das suas mãos as suas crianças, que poderiam estudar, sonhar, tornarem-se gente importante na sociedade”, diz o Padre Fonseca à Fundação AIS. Para este sacerdote, é preciso que “a guerra termine já, que parem os raptos das crianças, que haja resposta para a crise humanitária que se vive em Cabo Delgado”. No terreno, os soldados governamentais, apoiados essencialmente pelos militares do Ruanda, procuram expulsar os terroristas, procuram devolver um sentimento de paz e de segurança às populações.

A guerra começou há sete anos. Há datas que não se esquecem nestes 2558 dias de insurgência islâmica no norte de Moçambique. Como em Fevereiro deste ano, depois dos terroristas terem estado na missão de Ocua, onde Fátima Castro procura todos os dias ser um sinal da ternura de Deus junto dos que por ali vivem, dos que por ali são acolhidos. Quando regressou à missão, um mês depois, tudo parecia ter voltado à normalidade. “Só que não”, diz a missionária de Braga à Fundação AIS. “Não havia crianças a brincar nem famílias no posto de saúde. O Joanito, de 4 anos, nunca mais veio pedir a bola, uma bolacha ou o “xumo” (sumo)!… A aldeia continuou em silêncio e a chorar os seus.”

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